Para calar de vez

A hepatite C é a principal causa de cirrose e de câncer de fígado no mundo. No Brasil, a doença já é uma epidemia, com 14.873 mortes registradas nos últimos dez anos. Não existe uma vacina para esse tipo de hepatite, que é o mais grave. Mas uma pesquisa publicada recentemente na Science Translational Medicine apresenta uma esperança: uma vacina que se mostrou eficiente em animais.

Desenvolvida por pesquisadores franceses, a nova vacina usa as chamadas ‘partículas semelhantes ao vírus’ (VLPs, na sigla em inglês) para induzir a produção de anticorpos neutralizantes do vírus da hepatite C (VHC) pelo sistema imune.

Essas partículas são uma espécie de ‘vírus oco’: têm as mesmas estruturas de um vírus, mas sem o material genético que o faz se replicar e causar a infecção. Ao serem injetadas na corrente sanguínea, as VLPs acionam a produção de anticorpos neutralizantes contra o vírus sem o risco de deixar a pessoa doente.

O VHC é altamente mutável e pode assumir várias formas. Essa característica faz com que 80% dos infectados não consigam se livrar do vírus e se tornem doentes crônicos, além de ser um empecilho para o desenvolvimento de vacinas.

A nova vacina contornou essa dificuldade. Por usar a estrutura externa do vírus, que não sofre tanta mutação quanto o seu material genético, ela foi capaz de induzir a produção de anticorpos que impediram a atuação das seis variações mais comuns do VHC, em macacos e camundongos.

VLP
As VLPs são semelhantes ao vírus: possuem a mesma carcaça de proteínas, mas não contêm o material genético que causa a infecção. (ilustração: Sofia Moutinho)

“Foi um feito extraordinário”, diz o líder da pesquisa David Klatzmann, da Escola de Medicina Pierre & Marie Curie, de Paris, um dos primeiros cientistas do mundo a isolar e caracterizar o vírus da Aids, o HIV, na década de 1990. 

O pesquisador aponta ainda que o uso das VLPs abre caminho não só para o controle da hepatite, mas também para outras doenças causadas por vírus mutáveis, como a dengue e a Aids.

Epidemia do século

A hepatite é considerada hoje uma epidemia silenciosa, que atinge 3% da população mundial. Como muitos dos infectados não desenvolvem sintomas, acabam transmitindo o vírus para outras pessoas pelo contato com o sangue infectado.

Klatzmann acredita que sua vacina veio em boa hora e alerta para as perspectivas de expansão da doença pelo mundo. “Até o final do século haverá mais pessoas infectadas com hepatite C do que com Aids”, diz. “Precisamos achar um modo de deter a propagação dessa infecção e a nossa vacina parece um bom começo.”

Até o final do século haverá mais pessoas infectadas com hepatite C do que com Aids

Para o médico Giovanni Faria, da Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho (Unesp), a perspectiva de uma vacina para hepatite é ótima, mas ela será mais bem aproveitada para determinados grupos do que para a sociedade em geral.

“O boom da hepatite foi antes dos anos 1980, quando ainda não se conhecia o vírus; a maioria dos infectados contraiu a doença nessa época”, conta. “Hoje a transmissão é bem menor e se dá principalmente entre os usuários de droga que compartilham seringas. A vacina será mais relevante para esse grupo de risco.”

Atualmente, o tratamento da doença é realizado com a associação de dois medicamentos, o interferon e a ribavirina, e a cura só é obtida em aproximadamente 48% dos casos. 

Ainda assim, o avanço obtido com a vacina vai depender do poder público para se tornar aplicável. Klatzmann acredita que será difícil conseguir recursos junto a empresas privadas para dar continuidade às pesquisas e comercializar a vacina.

“A vacina preventiva contra a hepatite C não é de interesse comercial para as grandes companhias de vacina; não há tanto uso para elas nos países desenvolvidos do Ocidente, que têm recursos para o tratamento da doença”, diz. 

O pesquisador avisa que já busca por financiamento nas agências públicas da França e espera começar os testes clínicos com a vacina em humanos já no ano que vem.


Sofia Moutinho

Ciência Hoje On-line