Pensando fora da célula

“Os seus professores não sabem de tudo, não acreditem nos livros didáticos, questionem as autoridades, olhem para seus próprios dados – pensem fora da caixa.” Foi com esse conselho que a bioquímica iraniano-americana Mina Bissell, renomada pesquisadora do câncer de mama do Laboratório Nacional Lawrence Berkeley, nos Estados Unidos, e cotada ao prêmio Nobel, terminou uma palestra para jovens pesquisadores da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) na semana passada. Não sem acrescentar que ela mesma já tinha se tornado uma autoridade e, portanto, também merecia ser desafiada.

Mina Bissell levou a filosofia de ‘pensar fora da caixa’ a sério e desafiou conceitos já estabelecidos. Por anos, a ideia corrente no meio científico era de que mutações genéticas nas células eram a causa do câncer. Mas Bissell olhou para fora da célula em busca de respostas e observou que o seu entorno, a chamada matriz extracelular, tem papel igualmente importante em determinar se uma célula é normal ou maligna.

O novo ponto de vista surgiu de um questionamento simples, quase evidente: como poderiam as células de nosso corpo ser tão diferentes se todas carregam o mesmo genoma?

Bissell olhou para fora da célula em busca de respostas e observou que o seu entorno, a chamada matriz extracelular, tem papel igualmente importante em determinar se uma célula é normal ou maligna

“Aqui temos o mesmo DNA que aqui”, diz a cientista apontando para o nariz e para os seios. “Se herdar uma mutação genética é suficiente para causar o câncer, todo o corpo de uma mulher que tenha os genes BRCA1 e BRCA2 [ligados ao câncer de mama], por exemplo, deveria ser canceroso. Elas deveriam ser um tumor gigante!”

Se esse não é o caso, pensou Bissell, provavelmente um fator importante do câncer não seria somente o que ocorre dentro do núcleo das células, mas fora dele. A partir daí, há mais de 30 anos, a cientista iniciou testes em laboratório com células saudáveis da glândula mamária humana, um tecido que muda bastante de estrutura durante a lactação e depois volta ao normal.

Primeiro, ela tentou cultivar as células em um disco de Petri, mas estas não sobreviviam. Somente quando a cientista recriou um ambiente externo mais semelhante ao do corpo humano, um ambiente em gel tridimensional e não achatado, as células responderam bem e, estimuladas, até produziram leite. “Descobrimos que a arquitetura importava, desenvolvemos esse maravilhoso gel e, não sei por que, na época, não pensei em patentear”, comenta a cientista. “Hoje alguém patenteou e ganha muito dinheiro com ele.”

Contexto revertido

Antes de tentar entender o que gera o tumor, Bissell começou a estudar o que faz uma célula normal manter sua estrutura. “A questão da especificidade do tecido é algo que não entendemos bem até hoje; e se não compreendemos o normal, como podemos entender o maligno?”, questiona.

A resposta, ela acreditava, estaria na matriz extracelular. Dependendo dos componentes do entorno e da comunicação desse meio com o núcleo celular, a célula se tornaria maligna ou não. A ideia ganhou ainda mais força depois que Bissell injetou, em embriões de galinhas, células de um oncogene que tinha mostrado em pesquisas anteriores ter a capacidade de provocar câncer nessas aves. Enquanto nas galinhas adultas o oncogene provocava tumores, nos embriões nada fez.

“Isso significa que o contexto é que determina quando um oncogene causa câncer”, afirma a cientista. Se o contexto tem tanta importância, alterando-o seria possível mudar a forma maligna dos tumores. E foi isso mesmo que Bissell provou mais tarde, em 1997. A cientista conseguiu que células de tumor de mama voltassem a sua forma normal depois de inseridas em um ambiente quimicamente equilibrado. Mesmo com a mutação genética, as células preservaram suas funções.

Células da glândula mamária
Mudando apenas as condições do entorno celular, a cientista conseguiu transformar células normais da glândula mamária (esq.) em células malignas (centro). Ela também fez o caminho inverso, devolvendo uma estrutura normal a células malignas (dir.). (foto: Carolyn Larabell/ Lawrence Berkeley National Laboratory)

Depois, a cientista fez o caminho contrário: transformou células saudáveis em cancerosas ao comprometer a interação entre a matriz extracelular e os núcleos celulares. As experiências abriram caminho para uma nova abordagem de tratamento do câncer, já em testes avançados atualmente.

Especificidades

Bissell insiste: as células com mutações não estão condenadas a virar tumores. Elas só se tornam cancerosas quando perdem a sua forma devido a alguma interação anormal com o meio em que estão inseridas. Ou seja, forma e função estão intimamente ligadas. Por isso, um câncer de mama, que acomete um tipo específico de células e um meio específico, não pode ser tratado da mesma maneira que um câncer de pulmão, que acomete células completamente diferentes.

“Temos que entender a especificidade dos tecidos para entender o câncer”, reforça a pesquisadora, que critica a visão de que a resposta para tudo está no DNA. “Não entendo como as pessoas podem achar que o genótipo é o preponderante quando nos olhamos no espelho e é óbvio que o que prepondera é o fenótipo, essa incrível variedade de formas com um mesmo material genético. De que adianta sequenciar o genoma e continuar sem saber por que um nariz é um nariz?”

Ao estudar a matriz extracelular dos seios, Bissell e seus orientandos identificaram algumas substâncias envolvidas no câncer de mama. Uma delas é a glicose, uma das moléculas do popular açúcar. Em testes de laboratório, eles mostraram que o excesso de glicose no meio celular provoca o surgimento de tumores. “Da próxima vez que forem comer o terceiro prato desses maravilhosos doces brasileiros, pensem duas vezes”, brinca.

A cientista e colegas descobriram que a laminina está diretamente ligada à capacidade da célula de parar de se dividir. A falta da substância pode ser um dos fatores que desencadeiam o câncer

Se a simples glicose pode causar câncer, por que não temos todos a doença? Esse foi outro questionamento que incentivou a pesquisadora a fazer mais estudos. Para entender o que está por trás do crescimento anormal dos tumores, ela começou a pesquisar o que leva as células normais a saber quando parar de se multiplicar. Foi assim que Bissell se deparou com a laminina, uma proteína que faz com que as células fiquem ‘grudadas’ na matriz extracelular.

A cientista e colegas, inclusive do Brasil, descobriram que a laminina faz muito mais e está diretamente ligada a essa capacidade da célula de parar de se dividir. A falta da substância pode ser um dos fatores que desencadeiam o câncer. “A laminina não está presente na matriz extracelular de 97% dos cânceres de mama”, pontua Bissell.

Os estudos com a proteína continuam e a cientista acredita que, conhecendo melhor a sua interação com outras substâncias e as células, é possível usá-la no tratamento do câncer de mama e da leucemia. “Estamos muito perto disso”, diz. “Muitas terapias já focam no microambiente hoje, tratando, por exemplo, a inflamação, que, quando resolvida, já leva muito do câncer embora.”

Apesar dos avanços, Bissell não acredita em uma cura do câncer. “Não vamos erradicar o câncer, pois ele está ligado ao envelhecimento”, afirma. “Ao envelhecermos, todos os tecidos perdem sua arquitetura e ficamos expostos ao câncer. Não faz sentido falar em fim do envelhecimento, logo, não faz sentido falar em cura do câncer. Mas podemos sim atrasar o seu aparecimento, torná-lo uma doença crônica.”

Para que esse dia chegue, a cientista pede mais estudos que levem em consideração a forma e a estrutura das células e seu entorno. “Sabemos tudo sobre o genoma, seu alfabeto e suas letras, mas não sabemos nada sobre a linguagem e o alfabeto da forma”, conclama.

Sofia Moutinho
Ciência Hoje On-line