Polêmica à mesa

Até 2015 deve começar a ser cultivado no Brasil o feijão resistente ao vírus do mosaico dourado, primeiro transgênico desenvolvido com tecnologia 100% nacional e liberado para plantio e comercialização pela Comissão Técnica Nacional de Biossegurança (CTNBio).

O que pode soar boa notícia para agricultores, que veem na nova variedade uma solução para as perdas enfrentadas com a praga, é motivo de preocupação para alguns pesquisadores. Para eles, o cultivo e o consumo de organismos geneticamente modificados (OGMs) desenvolvidos com a tecnologia usada no feijão transgênico podem oferecer riscos à saúde e ao meio ambiente.

Essa tese é tema de artigo publicado na atual edição do periódico científico Environment International, no qual pesquisadores de Brasil, Austrália e Nova Zelândia questionam a atuação de órgãos reguladores de cada um dos países na liberação de OGMs.

Para eles, ao liberar o cultivo e o comércio de OGMs que contêm moléculas chamadas de RNA de fita dupla (dsRNA) – caso do feijão resistente ao mosaico dourado –, os órgãos reguladores estariam ignorando a possibilidade de efeitos adversos ao usar critérios ultrapassados de análise de risco.

Foram estudados os casos do Food Standards Australia New Zealand (FSANZ), que atua na Austrália e na Nova Zelândia, do Office of the Gene Technology Regulator (OGTR), da Austrália, e da CTNBio, do Brasil.

“A ideia de escrever o artigo surgiu porque vimos que esses três órgãos agem de maneira muito parecida”, diz a agrônoma brasileira Sarah Agapito, da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC), coautora do artigo.

A produção comercial do feijão resistente ao vírus do mosaico dourado foi aprovada em setembro de 2011 após cerca de uma década de estudos. O produto foi criado nos laboratórios da Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária (Embrapa), instituição pública que não pretende cobrar royalties de agricultores que cultivarem o OGM.

Plantação experimental do feijão transgênico
Plantação experimental do feijão transgênico desenvolvido pela Embrapa. (foto: Francisco Aragão/ Embrapa)

O problema

A técnica tradicional de modificação genética de uma espécie consiste na inserção de um pedaço de DNA em seu genoma. Dessa forma, o organismo transgênico passa a expressar uma proteína de interesse – por exemplo, que o torne resistente a determinada praga.

O feijão imune ao vírus do mosaico dourado pertence a outra categoria de OGM, que, em vez de expressar uma nova proteína, produz o dsRNA. É esse dsRNA gerado que, ao se acoplar a moléculas do vírus, impede que o agente infeccioso contamine o vegetal. “O problema é que não se sabe o que pode acontecer a um animal ou ser humano exposto a essa nova molécula de dsRNA”, diz Agapito. “Uma extensa literatura independente indica haver efeitos adversos dessas moléculas.”

Agapito: “O problema é que não se sabe o que pode acontecer a um animal ou ser humano exposto a essa nova molécula de dsRNA”

Entre as mais de 100 referências citadas no artigo, a pesquisadora destaca o trabalho do grupo de Lin Zhang. Em janeiro de 2012, o pesquisador chinês publicou artigo na revista Cell Research em que afirma ter encontrado moléculas de dsRNA de uma espécie de arroz geneticamente modificada na corrente sanguínea de humanos.

“Isso comprova que essas moléculas são estáveis, ou seja, sobrevivem à industrialização e ao cozimento, uma vez que não se consome arroz cru, e ainda passa incólume ao processo de digestão antes de chegar ao sangue”, diz a pesquisadora da UFSC. “Em laboratório, os chineses demonstraram ainda que a molécula de dsRNA encontrada na planta era capaz de regular genes de roedores que a consumiam.”

Agapito considera que os métodos usados para avaliação de riscos do feijão desenvolvido pela Embrapa não foram suficientes para verificar as rotas de exposição às moléculas de dsRNA. “O argumento da CTNBio para liberar o OGM foi que, por não produzir uma proteína nova, a variedade não teria risco de alergenicidade ou toxicidade”, diz. “Entre os testes feitos, alimentaram roedores com uma solução aquosa do dsRNA e com folhas ou grãos de feijão crus, o que claramente não é suficiente – ninguém come feijão desse jeito.”

Segundo a pesquisadora, todos os questionamentos expostos no artigo haviam sido enviados à CTNBio antes da votação que liberaria o feijão transgênico para cultivo e comércio. “Nós, da UFSC, redigimos um relatório técnico advertindo para a existência de literatura que aponta haver possibilidade de riscos, mas o documento foi rejeitado”, diz.

CNTBio se pronuncia

Procurado pela CH On-line, o farmacêutico bioquímico Flavio Finardi Filho, presidente da CTNBio, enviou documento de oito páginas em que contesta os argumentos levantados no artigo assinado por Sarah Agapito e detalha o processo de avaliação de riscos feito com OGMs.

Finardi: “Se a decisão final foi favorável é porque as informações coletadas não indicavam riscos importantes”

Ele nega que o relatório técnico produzido pelo grupo da UFSC tenha sido ignorado pela CTNBio na avaliação de risco do feijão transgênico. “Se a decisão final foi favorável é porque as informações coletadas não indicavam riscos importantes.” No processo de aprovação comercial da planta, o farmacêutico bioquímico foi um dos relatores. O presidente da CTNBio na ocasião era o agrônomo Edilson Paiva.

Em outro trecho do documento, Finardi rebate a crítica feita ao teste com folhas do feijão transgênico. Segundo ele, é nas folhas que os dsRNAs são metilados como nos grãos e estão disponíveis em maior concentração.

Pesquisador da Embrapa comenta artigo

O engenheiro agrônomo Francisco Aragão, da Embrapa e um dos coordenadores do projeto de desenvolvimento do feijão transgênico, também critica o artigo. Assim como Finardi, ele argumenta que o dsRNA presente na espécie geneticamente modificada já existe na natureza, uma vez que é produzido pela variedade não transgênica quando esta é infectada pelo vírus do mosaico dourado.

Folha de feijoeiro infectado
Folha de feijoeiro infectado pelo vírus do mosaico dourado. Variedade transgênica da planta, criada pela Embrapa, é imune à praga. (foto: Howard F. Schwartz/ Colorado State University, Bugwood.org)

Aragão questiona ainda o artigo do chinês Lin Zhang, utilizado como referência por Sarah Agapito. “Há dezenas de outras pesquisas feitas antes e depois do trabalho de Zhang que dizem que isso não acontece [RNA de planta ser absorvido por mamífero e regular organismo do animal]”.

Segundo o pesquisador da Embrapa, os testes de avaliação de risco do feijão transgênico seguiram a resolução normativa número 5 da CTNBio e envolveram caracterização molecular e agronômica da planta, análise de composição de fatores nutricionais e antinutricionais, experimentos no campo em três regiões do Brasil e alimentação de animais com as plantas cozidas. Posteriormente, esses animais ainda teriam sido analisados do ponto de vista bioquímico e celular.

O engenheiro agrônomo minimiza o fato de o artigo, que ele considera ser “de opinião”, ter sido publicado em uma revista de fator de impacto relevante (qualificação A1 na Qualis/Capes). “Há trabalhos sendo despublicados de periódicos de mais prestígio o tempo todo”, ressalta. “Quando a publicação aceita o paper, significa que o texto passou por um crivo mínimo, mas é só depois da publicação que vai poder ser confrontado por toda a comunidade científica.”

Sem acordo

Para Sarah Agapito, as justificativas dadas por Finardi e Aragão não são suficientes. “A argumentação de que moléculas de dsRNA produzidas pelo feijão transgênico da Embrapa já estão presentes no meio ambiente em plantas infectadas com o vírus do mosaico dourado é falsa”, diz. “Foram inseridos cerca de 50 mil nucleotídeos [DNA] no feijão transgênico, sendo que mais de uma cópia da sequência que produz o dsRNA está presente. E, mais importante, essas sequências estão truncadas, ou seja, são diferentes daquela que era esperada.”

Por fim, a pesquisadora desafia os integrantes da comissão de biossegurança brasileira. “Se alguns membros da CTNBio acreditam que sua metodologia de análise de risco de plantas transgênicas contendo tecnologia de dsRNA está correta, eles deveriam expor seus argumentos em artigo científico. E que este seja, é claro, submetido a uma avaliação peer-reviewed [revisão por pares] e, se aprovado, que tenha livre acesso para que toda a comunidade científica fique sabendo.”

Aragão: “Em minha opinião, algumas coisas que estão escritas no artigo mereciam que a autora respondesse em juízo”

À CH On-line, Aragão afirmou que ainda estuda se encaminhará algum tipo de resposta à revista Environment International. “Mas, em minha opinião, algumas coisas que estão escritas no artigo mereciam que a autora respondesse em juízo”, diz, ressaltando que fala apenas em seu nome, não como porta-voz da Embrapa.

O trabalho recebeu manifestação de apoio de ONGs como a European Network of Scientists for Social and Environmental Responsibility, a Third World Network e a GM Watch.

Embora a produção comercial do feijão transgênico tenha sido aprovada pela CTNBio em setembro de 2011, a leguminosa ainda passa por ensaios técnicos nas cinco regiões do Brasil por exigência do Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento. No ano que vem deve ser feita a multiplicação das sementes para que em 2015 tenha início o cultivo em larga escala.

Célio Yano
Ciência Hoje On-line/ PR