Reparação incompleta

        

Com o fim dos governos militares que ocuparam o poder em vários países da América Latina na segunda metade do século 20, cada um adotou estratégias diferentes para retratar os crimes praticados por essas ditaduras, que foram marcadas pelo desrespeito às liberdades democráticas e aos direitos humanos.

Um estudo comparou as ações adotadas pelos governos do Brasil, Argentina e Chile e constatou que, ao contrário de outros países, que puniram alguns culpados, o Brasil limitou-se a reparar financeiramente as vítimas.

Os resultados da pesquisa foram apresentados na tese de doutorado da cientista política Glenda Mezarobba, defendida na Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, da Universidade de São Paulo (USP). Segundo a pesquisadora, os abusos dos direitos humanos geram quatro obrigações ao Estado – investigar, processar e punir os violadores; revelar a verdade a vítimas e à sociedade; reparar adequadamente; e afastar criminosos de órgãos da administração pública.

“A anistia assinada em 1979 tratava basicamente de atender aos interesses do governo militar brasileiro de manter impunes os integrantes do aparelho de repressão”, afirma Mezarobba. “A lei original não previa nenhum tipo de reparação, apenas uma conciliação. Apenas a partir de 1995, com a Lei 10.559 (“Lei dos Desaparecidos”), passou-se a reparar financeiramente as vítimas, mas as outras obrigações foram ignoradas, sem, por exemplo, o julgamento de culpados ou sua expulsão da burocracia”.

Com a assinatura da Lei dos Desaparecidos, o Estado brasileiro reconheceu sua responsabilidade pelas violações mais graves de direitos humanos ocorridas durante o regime militar, e passou a pagar uma indenização aos familiares, de em média R$ 120 mil. A partir de 2001, com a criação da Comissão de Anistia e a aprovação da Lei de Perseguidos Políticos, o governo passou a reparar também sobreviventes para compensar o período em que ficaram, por exemplo, impedidos de exercer sua atividade profissional.

Segundo a cientista política, o critério de reparar as perdas econômicas levou a uma grande discrepância no valor de indenizações para as vítimas. “As duas leis não contaram com uma ampla participação social”, avalia. “A Lei 10.559 repara as pessoas por problemas econômicos que tenham sofrido, não porque tenham sido presas ou torturadas. Esse critério privilegia valores outros que não a vida”.

Mezarobba acredita que essa legislação foi construída de maneira equivocada. “Nenhuma dessas leis chega a empregar a palavra ‘vítima’. Elas usam termos como ‘anistiando’”, lamenta.

Argentina e Chile

Protestos contra o regime militar no Chile em 1985 (foto: Wikimedia Commons).

Por sua vez, os governos argentino e chileno promoveram iniciativas mais variadas, com a criação de Comissões de Verdade – organismos públicos para dar voz às vítimas – e o julgamento de alguns acusados. Além disso, foram promovidas iniciativas simbólicas de reparação, como a criação de museus e monumentos, além de auxílio saúde e psicológico.

De acordo com a pesquisadora, nesses países houve uma maior participação da sociedade nesse processo. “Precisamos pensar mais no aspecto de reconstrução social. A dimensão pública se perdeu, pois a sociedade [brasileira] pouco se interessa pelas ações do governo relacionadas a esta temática”.

Enquanto na Argentina e no Chile, por exemplo, as próprias vítimas podem processar seus torturadores, no Brasil essas ações dependem do Ministério Público para acontecer. Outra diferença foi a pressão maior exercida por entidades como a Organização das Nações Unidas (ONU) e a Organização dos Estados Americanos (OEA) sobre a Argentina e o Chile. “A diplomacia brasileira foi muito eficaz em barrar a influência de organizações internacionais que pediam mais respeito aos direitos humanos no país”.

Mezarobba assinala que é preciso que as leis tratem de todas as perdas das vítimas, não apenas as de ordem econômica. “É preciso pensar nas instituições que estamos construindo e como os direitos humanos e o direito à vida se inserem nelas”, comenta. “Há uma necessidade de se restabelecer a confiança da sociedade brasileira em suas instituições.”

Igor Waltz
Ciência Hoje On-line
02/07/2008