Sobre políticos e escravos

“Não são poucos os políticos brasileiros envolvidos em contratação de trabalho escravo.” O sinistro diagnóstico é da cientista política Celly Cook Inatomi, que vem se dedicando ao escrutínio do tema em seu doutorado na Universidade Estadual de Campinas (Unicamp).

Não bastasse a péssima notícia, que nem novidade é, Inatomi percebeu algo grave: o poder judiciário costuma dar tratamentos diferenciados para acusados de envolvimento em trabalho escravo rural.

“Para políticos e grandes empresários, o tratamento é um; para pequenos proprietários ou empresários de pouca expressão econômica, o tratamento é outro”

“Para políticos e grandes empresários, o tratamento é um; para pequenos proprietários ou empresários de pouca expressão econômica, o tratamento é outro”, constatou Inatomi. E não é puro achismo. A pesquisadora da Unicamp vasculhou, nos arquivos do Tribunal Superior do Trabalho (TST) e do Superior Tribunal de Justiça (STJ), todos os casos envolvendo trabalho escravo rural entre 2005 e 2011.

“Estratégias evasivas, argumentos protelatórios, tergiversações processuais”. Essas são manobras constantes que, segundo Inatomi, têm sido usadas com maestria no judiciário, com o intuito de anular ou amenizar as acusações que incidem sobre políticos ou grandes empresários. “Transformam acusações de trabalho escravo rural em simples irregularidades trabalhistas.”

“Por outro lado, quando o réu é de pouca expressão política ou econômica, os processos costumam ser bem mais rápidos e incisivos nas decisões condenatórias”, afirmou a pesquisadora, que apresentou seu trabalho durante o 37º encontro anual da Associação Nacional de Pós-Graduação e Pesquisa em Ciências Sociais (Anpocs), que acontece nesta semana em Águas de Lindoia (SP).

Escravocrata moderno

O foco da pesquisa de Inatomi tem sido o caso emblemático de João Ribeiro, senador pelo estado do Tocantins. Ele foi denunciado por manter em uma de suas fazendas, no Pará, trabalhadores em condições degradantes – que os fiscais do trabalho classificam como “condições análogas às de escravidão”. O caso é de 2004 e se arrasta até hoje.

Trabalhador
Embora fiscais flagrem trabalhadores em situações degradantes, muitas acusações de trabalho escravo rural são convertidas em simples irregularidades trabalhistas. (foto: Henrique Kugler)

“Desde 2003 o governo federal tem incrementado, em quantidade e qualidade, as ações de fiscalização e erradicação de trabalho escravo rural no Brasil”, disse Inatomi. Mas, segundo ela, o senador em questão e a maioria dos juízes envolvidos no caso insistem na argumentação de que essas ações são ilegítimas e distantes das verdadeiras necessidades do trabalhador rural.

“O senador acusado, assim como os juízes do caso, argumenta que os grupos de fiscalização e as autoridades atuam de modo panfletário e ideológico”, indignou-se a pesquisadora da Unicamp. “E vão além: para a maioria deles, não há como defender que seja praticado no campo o mesmo padrão de cidadania que se tem na cidade!”

Brasil, 2013

Muitos hesitam em acreditar, mas trabalhadores em condições degradantes – ou análogas às de escravo – ainda são encontrados com espantosa frequência no Brasil.

A maioria das ocorrências de trabalho escravo rural concentra-se no Pará. Mas há casos em vários estados do Norte, Nordeste, Centro-oeste e Sudeste

No caso do trabalho escravo rural, a maioria das ocorrências concentra-se no Pará. Mas fiscalizações do Ministério Público do Trabalho já registraram casos em diversos estados do Norte, Nordeste, Centro-oeste e mesmo do Sudeste.

Embora haja reconhecimento público de que existe trabalho escravo no Brasil – o ex-presidente Fernando Henrique Cardoso assumiu isso publicamente em 1995 –, ainda não há consenso sobre o que qualifica a condição ‘degradante’. A enrolação conceitual, segundo a pesquisadora, é muito usada para protelar ou arrastar decisões ou processos flagrantes de uso de mão de obra em condições desumanas.

Henrique Kugler*
Ciência Hoje On-line

* O jornalista viajou a Águas de Lindoia a convite da Anpocs.