Somos tão diferentes assim?

A pergunta do título deu o tom do II Congresso da Associação Médico-veterinária Brasileira de Bem-estar Animal, realizado na semana passada, em Curitiba, para debater o tema consciência e cognição animal. O encontro, que teve o apoio do Laboratório de Bem-estar Animal (Labea) da Universidade Federal do Paraná, homenageou o etólogo brasileiro César Ades, referência mundial na área de comportamento animal, falecido em março deste ano.

Para o especialista em ética animal Raymond Anthony, da Universidade Anchorage, no Alaska, Estados Unidos, se usamos animais em nosso benefício, temos que nos sentir obrigados a atender suas necessidades e a protegê-los. “Garantir bem-estar é muito mais que apenas evitar a crueldade”, disse Anthony, para um público formado em grande parte por estudantes de graduação em veterinária. “É nosso dever mantê-los livres de fome, sede, dor, doença, estresse e medo.”

Se usamos animais em nosso benefício, temos que nos sentir obrigados a atender suas necessidades e a protegê-los

A veterinária Rita Leal Paixão, do Labea, ao falar sobre o uso de animais em laboratórios de pesquisa, condenou o procedimento muitas vezes adotado nesses ambientes de separar animais recém-nascidos de suas progenitoras.

Ela lembrou, a propósito, o conhecido experimento feito no final dos anos 1950 pelo psicólogo norte-americano Harry Harlow (1905-1981), em que ele separou bebês macacos de suas mães logo após o nascimento. Apesar de receber alimento e cuidados médicos, os animais isolados morriam. Outras etapas do experimento de Harlow mostraram que o recém-nascido apega-se muito mais aos que o aconchegam e lhe dão afeto do que àqueles que o nutrem.

Ao tratar da reação dos animais aos estímulos do meio ambiente, Paixão defendeu a recuperação do termo ‘senciente’, cunhado pelo filósofo australiano Peter Singer – professor de bioética da Universidade de Princeton, nos Estados Unidos – em seu livro Libertação animal, de 1975. “Animais sencientes são aqueles capazes de expressar estados mentais a partir de sensações físicas”, explicou a veterinária da UFPR.

Senciência animal
De acordo com o filósofo australiano Peter Singer, a senciência animal é a capacidade do indivíduo de expressar estados mentais a partir de sensações físicas. (foto: HSUS)

Segundo Raymond Anthony, o número de animais mortos em laboratórios de pesquisa nos Estados Unidos chega a 25 milhões por ano. No que se refere a animais criados para consumo alimentício, o número de indivíduos abatidos anualmente em todo o mundo atinge nada menos que 80 bilhões.

“São números alarmantes”, considera Anthony, para quem a questão da consciência animal precisa ser encarada seriamente no campo da neurociência. “Ter consciência é um tudo-ou-nada, isto é, determinado grupo animal tem ou não consciência, ou trata-se de uma questão de grau?”, pergunta-se.

Declaração de Cambridge

A questão, embora controversa, tem um aspecto cada vez mais aceito por um número cada vez maior de neurocientistas: “os humanos não são os únicos animais com as estruturas neurológicas que geram consciência”.

“Os humanos não são os únicos animais com as estruturas neurológicas que geram consciência”

A afirmação está na Declaração de Cambridge sobre Consciência, publicada em julho passado, na Inglaterra, durante uma conferência sobre consciência em animais, humanos e não humanos, com a assinatura de 25 eminentes pesquisadores.

De acordo com esses neurocientistas, as estruturas do cérebro responsáveis pela produção da consciência são análogas em humanos e outros animais (todos os mamíferos, aves e outras criaturas, inclusive polvos).

Signatário da Declaração de Cambridge, o neurocientista norte-americano David Edelman, do Instituto de Neurociências, em San Diego, Estados Unidos, disse, em recente entrevista à Ciência Hoje, que consciência, para ele, “é a capacidade que tem um indivíduo de perceber um cenário integrado de informações sensoriais e mantê-lo em sua memória”.

Militância

Durante o evento de Curitiba foi lembrado o trabalho de organizações, como a Humane Society Internacional (HSI),  que vêm lutando para diminuir o consumo de produtos de origem animal. De acordo com o último relatório da organização, a produção animal é responsável por cerca de 70% do desmatamento da floresta amazônica e por mais de 60% das emissões brasileiras de gás metano na atmosfera.

A produção animal é responsável por cerca de 70% do desmatamento da floresta amazônica

Para a veterinária Carla Molento, fundadora do Labea, as pessoas que têm informação e insistem em ignorar a senciência animal revelam descaso pelo problema do sofrimento ou são portadoras do que ela chamou de “dissonância cognitiva”.

Segundo Molento, quem trabalha em abatedouros geralmente não quer falar sobre esse assunto. “O sentimento que envolve essas pessoas durante toda sua jornada de trabalho deve ser parecido com o que temos quando alguém fala de produção animal enquanto comemos um bife durante o almoço.”

Mariana Ceccon
Especial para CH On-line/ PR