Tendências e novidades no ‘front’ climático

Setembro tem sido um mês agitado – pelo menos para quem acompanha as discussões acerca das ciências climáticas. Os mais atentos ficaram até ouriçados. Motivo: vazou na internet, recentemente, uma prévia do quinto relatório do Painel Intergovernamental sobre Mudanças Climáticas, o IPCC.

O relatório trouxe à tona uma nova dimensão do problema: os prejuízos à saúde – física e mental – esperados a partir das possíveis alterações do clima

Mas, em terras brasileiras, também temos uma novidade. Na semana passada, cientistas de todo o país estiveram em São Paulo (SP) para lançar o sumário do primeiro Relatório de Avaliação Nacional do Painel Brasileiro de Mudanças Climáticas (PBMC). O documento reúne os mais recentes resultados de pesquisas na área e sintetiza as principais tendências climáticas que, de acordo com os modelos, deverão ser observadas nas próximas décadas.

O aumento de temperatura e a intensificação de eventos extremos apontados no relatório não são novidade para ninguém. Mas nunca é demais lembrar. Porém, um detalhe insuspeito – e, para alguns, surpreendente – é que as discussões em São Paulo trouxeram à tona uma nova dimensão do problema. São os prejuízos à saúde – física e mental – esperados a partir das possíveis alterações do clima.

Para bater um papo sobre esse novíssimo relatório, convidamos o climatologista José A. Marengo, do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe). Marengo é figura tarimbada na climatologia – além de ser membro do próprio IPCC, ele integra o time de revisores do PBMC.

José MarengoCH On-line: O que o primeiro Relatório de Avaliação Nacional do Painel Brasileiro de Mudanças Climáticas tem a nos dizer?
José Marengo: De maneira geral, o que está mudando muito no Brasil é a frequência dos eventos extremos. São previsões que têm se concretizado não só por aqui, mas também em várias partes do mundo. Estudos mostram que a temperatura aumentou ao longo dos últimos 50 anos, e que nas próximas décadas pode continuar aumentando.

Os cenários sugeridos pelo relatório brasileiro se assemelham aos indicados pelos relatórios do IPCC. Para a Amazônia, fala-se em um aumento da ordem de 5ºC a 6ºC. Para o Nordeste, estima-se redução das chuvas em talvez 20%, enquanto para o Sul e o Sudeste poderemos observar aumento de extremos de precipitação – o que pode ser associado ao aumento da frequência de desastres naturais: chuvas intensas, deslizamentos, enchentes… Para o Sul, espera-se um aumento de temperatura relativamente inferior ao da Amazônia – pode chegar a 3ºC. As chuvas poderão se concentrar em poucos meses do ano. Mais chuvas em menos dias – com períodos secos e quentes nos intervalos.

Alguma região do Brasil pode ser considerada especialmente vulnerável?
O Nordeste. Na verdade, já é uma região bastante vulnerável. Temos uma seca que já entra no segundo ano e vemos diariamente as consequências disso. Não precisamos esperar 2040 para sentir os impactos.

No lançamento do relatório, em São Paulo, comentou-se acerca dos problemas de saúde derivados das condicionantes ambientais. Isso foi uma novidade?
Sim. Esse foi um tema muito interessante. Quando pensamos em problemas relacionados a extremos climáticos, pensamos em qualidade da água, leptospirose, dengue, malária… Uma pesquisadora do painel nos mostrou, no entanto, que não só problemas ditos ‘físicos’ devem nos preocupar, mas também os problemas mentais e psicológicos que ocorrem como consequência da alteração dos padrões climáticos. Aumento de infartos, acidentes vasculares cerebrais, depressão. Isso foi realmente uma novidade.

Foram feitas pesquisas em Blumenau (SC), depois das fortes chuvas de 2008. Meses depois foram registrados altos níveis de estresse na região – mesmo em pessoas que moram em áreas rurais, distantes dos clássicos problemas urbanos. É claro que esses quadros são resultantes de fatores climáticos e não climáticos também. De qualquer maneira, aprendemos coisas novas.

O relatório do PBMC menciona algo sobre a influência antrópica sobre o sistema climático? Como separar o que é variação natural do clima do que é variação ocasionada pelas atividades humanas?

Em climatologia, é muito difícil dizer que porcentagem da variação é natural e que porcentagem é condicionada pela ação antrópica

É uma questão complicada. Não há como separar. O IPCC também passa por essa mesma dificuldade, esse mesmo problema – comum a todos os grandes centros de pesquisa no mundo. Se pensarmos nas enchentes urbanas, por exemplo, é fato que elas estão associadas às chuvas. Mas também é fato que estão associadas a uma contribuição humana – isto é, à urbanização do que antes era floresta atlântica.

Há fatores antrópicos; e há também fatores naturais, sem dúvida, como as próprias emissões de gases de efeito estufa por causas naturais. É muito difícil separar. O que sabemos é que a contribuição antrópica existe, e não deve ser ignorada. Mas, em climatologia, é muito difícil dizer que porcentagem da variação é natural e que porcentagem é condicionada pela ação antrópica.

Temos ouvido governos se pronunciarem acerca de taxas de redução de gases de efeito estufa. Mas, proporcionalmente, tem havido ações para aperfeiçoar nossas estruturas urbanas e sociais de modo a evitar que os impactos sejam mais temerosos?
O Brasil tem sido bastante ativo em políticas de mitigação. Principalmente no que se refere a taxas de emissão de gases de efeito estufa, a políticas de créditos de carbono, ao uso de biocombustíveis. São iniciativas de longo prazo. Mas não são suficientes, pois temos problemas de curto prazo – como pessoas morando em áreas de risco, em áreas urbanas sem drenagem adequada. São duas frentes de atuação que deveriam ser simultâneas.

Como tem sido o diálogo entre cientistas e gestores públicos?
Tem melhorado muito. Mas é clássica a falta de comunicação – ou, melhor, a dificuldade de comunicação. Traduzir o linguajar científico para a linguagem dos tomadores de decisão – e para a população em geral – ainda é um desafio. Falando em diálogo, estamos agora trabalhando em parceria com representantes das ciências sociais. Temos avançado nesse processo ao longo dos últimos cinco anos. Climatologistas já atuam em grupos de trabalho com médicos, geólogos, antropólogos, sociólogos, economistas. O encontro da semana passada, em que divulgamos o relatório, foi uma amostra dessa prolífica interação.

Uma curiosidade: do ponto de vista formal, qual é a relação entre o PBMC e o IPCC?
Em linhas gerais, o Painel Brasileiro segue a mesma metodologia do IPCC. São três grupos de trabalho. O primeiro é sobre as propriedades científicas do clima; o segundo, sobre impactos, vulnerabilidades e adaptação; enquanto o terceiro é sobre mitigação dos possíveis efeitos causados pelas mudanças climáticas. É claro que temos bem menos recursos e um número bem menor de cientistas que o IPCC. Mas o PBMC dá esse detalhamento regional, enquanto o IPCC apresenta discussões e análises em nível global.

Relatório PBMCUm breve histórico: a ideia do PBMC surgiu em 2009, por iniciativa do Ministério do Meio Ambiente e do Ministério da Ciência, Tecnologia e Inovação. O relatório que apresentamos na semana passada é resultado de três anos de trabalho. E o que divulgamos foi apenas um sumário executivo – um documento curto, bastante sintético. O relatório final ainda não está pronto. O primeiro deles, referente aos trabalhos do primeiro grupo, deve sair ainda este ano. No IPCC também tem sido assim. No final de setembro, será divulgado o sumário do relatório do primeiro grupo. O relatório final virá meses depois. A ideia era que o painel brasileiro tivesse terminado seu relatório antes, para que os resultados alimentassem o relatório do IPCC, que será divulgado no fim do mês. Infelizmente, por falta de interação e recursos, não deu tempo. Mas uma coisa é certa: as pesquisas que foram usadas pelo painel brasileiro também foram consideradas pelo IPCC.

Os cenários futuros propostos pelo IPCC e pelo PBMC são baseados em modelos climáticos. Que grau de confiabilidade podemos ter nessas tecnologias?
Modelos são representações matemáticas da realidade. Não são perfeitos. Existem incertezas, mas há diferença entre incerteza e erro. Conheço economistas que trabalham com modelos que, segundo eles, são ‘perfeitos’. Nós, climatologistas, assumimos que incertezas existem. É preciso entendê-las e quantificá-las. É importante destacar que não são previsões. São projeções derivadas de cenários.

Os resultados do relatório do IPCC agora incluirão novas fontes de observação, tecnologias de sensoriamento remoto e técnicas estatísticas mais sofisticadas

Quanto ao próximo relatório do IPCC, algum comentário ou expectativa?
Ainda não podemos divulgar nada a respeito. Temos ordens para ficar em silêncio (risos). O que posso dizer é que os resultados, agora, incluirão novas fontes de observação, tecnologias de sensoriamento remoto e técnicas estatísticas mais sofisticadas. Algumas lacunas do AR4 [o relatório anterior] começam a ser preenchidas no AR5 [o relatório que deverá sair até o fim de setembro].

Ainda sobre o AR5: vazou um rascunho do documento na internet, certo? Que história é essa?
Vazou. O que acontece é o seguinte: o trabalho do IPCC leva anos para ser elaborado. Faz-se um primeiro rascunho. Ele é revisado e modificado. Em seguida, produzimos um segundo rascunho, que, por sua vez, também é revisto e alterado. Assim chegamos à terceira versão, que resulta no relatório final. Nesse processo, o texto pode ser modificado radicalmente. Quando estamos na terceira versão, a primeira e a segunda  já não mais têm valor. O que vazou na internet recentemente foi o primeiro rascunho do AR5. Um texto que não tem mais validade; completamente desatualizado.

Na publicação dos relatórios do IPCC, há algum tipo de pressão política por parte de governos?
O IPCC é um painel intergovernamental. E os pesquisadores são escolhidos pelos governos entre a comunidade científica de cada país. Além disso, entre os revisores de capítulos dos relatórios, estão os próprios governos. Mas o relatório deve ser científico, isento de políticas ou conveniências ideológicas. Não é esse nosso papel, e precisamos nos certificar para que isso não aconteça. Não há pressões nem censura política.