Um componente genético para a diversidade lingüística?

 

É possível que os genes partilhados por um povo influenciem o idioma por ele falado? Isso é o que tentam mostrar dois pesquisadores da Universidade de Edimburgo, na Escócia. Em artigo publicado esta semana na revista PNAS , eles apontam uma correlação estatística significativa entre diferenças na estrutura genética das populações e o tipo de língua falada por elas.

Estação de trem em Pequim, capital da China. Todos os idiomas falados nesse país são tonais, inclusive o mandarim, com cerca de 800 mil falantes (foto: Wikipedia).

O estudo mostra que, nas populações que falam idiomas tonais – nos quais uma mudança na tonalidade com que uma palavra é pronunciada pode afetar seu sentido ou função gramatical –, é maior a freqüência com que ocorrem determinados alelos dos genes ASPM e Microcephalin , envolvidos no desenvolvimento e no tamanho do cérebro de primatas.

Praticamente nenhuma das línguas indo-européias – como o português e o inglês – são tonais. No entanto, esses idiomas são comuns no sudeste da Ásia, na África subsaariana, na América Central e na bacia amazônica. A hipótese do lingüista Robert Ladd é que poderia haver um componente genético por trás dessa distribuição.

A idéia surgiu após a publicação em 2005 de um artigo que discutia a evolução adaptativa dos genes ASPM e Microcephalin . “Fiquei chocado pela similaridade entre a distribuição geográfica dos alelos mais antigos desses dois genes e das línguas tonais”, conta Ladd à CH On-line . Com a colaboração do geneticista Dan Dediu, ele decidiu investigar essa hipótese.

Os pesquisadores postulam que diferenças sutis na estrutura do cérebro, guiadas pelos genes ASPM e Microcephalin , poderiam predispor os indivíduos de uma população a aprender mais facilmente um idioma tonal. A transmissão cultural de geração em geração se encarregaria de consolidar esse padrão ao longo do tempo. No entanto, enfatizam os pesquisadores, essas diferenças sutis não se manifestariam em escala individual.

Correlação estatística e relação causal
Para colocar sua hipótese à prova, a dupla selecionou 49 populações de vários continentes e comparou as características dos idiomas falados por elas e a freqüência com que ocorriam nesses grupos diferentes combinações dos blocos de DNA (ou haplótipos) contendo os genes ASPM e Microcephalin . Os pesquisadores identificaram uma correlação significativa entre determinados haplótipos e a distribuição das línguas tonais entre as populações, mesmo após levar em conta processos históricos e geográficos que poderiam explicar essa coincidência.

Os autores enfatizam que as conclusões não dão margem a qualquer interpretação que afirme que as línguas tonais, mais antigas, sejam menos desenvolvidas que as não-tonais. “Não sabemos que pressões seletivas levaram às novas variantes dos genes ASPM e Microcephalin . Não há razão de se acreditar que as línguas não tonais tenham qualquer tipo de vantagem evolutiva”, explica Ladd. “A sociedade chinesa desenvolveu tecnologia, política e filosofia avançadas com uma língua tonal.”

Apesar da correlação apontada no estudo, é preciso cautela na interpretação dos resultados. O geneticista Sergio Pena, professor da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) e colunista da CH On-line , avaliou o trabalho com reticência. “Não há dúvida de que existe uma correlação estatisticamente significativa entre os haplótipos derivados e tonalidade, mas ela é apenas moderadamente significativa”, afirma Pena. “Inferir uma relação de causa e efeito é um salto no escuro, havendo inclusive a possibilidade de um precipício do outro lado. A probabilidade a priori de que esta relação de causa e efeito seja verdadeira é muitíssimo pequena. A confirmação desses achados vai depender de um melhor entendimento das propriedades bioquímicas e fisiológicas desses genes.”

Os autores admitem que a correlação estatística não implica uma relação causal e pretendem levar adiante experimentos sobre a aquisição da linguagem que permitam ratificar a hipótese. Em todo caso, a dupla sabe que tem muito trabalho pela frente. “A maior lacuna em nosso trabalho é o fato de não entendermos claramente o mecanismo pelo qual a diferença genética poderia se traduzir em um viés cognitivo”, reconhece Ladd. “Por isso precisamos realizar esses experimentos.”

Bernardo Esteves
Ciência Hoje On-line
29/05/2007