Um medicamento para doentes imaginários

A insatisfação com atividades outrora prazerosas, como o consumo, é um dos sintomas da DSACDAD (foto:  www.havidol.com).

Você tem se sentido cansado e estressado, preocupado com a vida e com a idade? Já não vê mais graça em atividades que antes lhe davam prazer? Talvez você esteja com uma nova doença, comum nos dias de hoje. Mas não se preocupe: seu problema pode ser resolvido com uma droga recém-desenvolvida. Ou poderia, se o medicamento – e o distúrbio que ele pretende tratar – existissem de fato. Ambos foram inventados por uma artista plástica em um trabalho que critica a indústria farmacêutica e a sociedade de consumo.

A doença em questão é a DSACDAD – sigla em inglês para uma expressão de difícil tradução, que significa algo como “distúrbio de ansiedade por déficit de consumo e atenção social disfórica” (no original, dysphoric social attention consumption deficit anxiety disorder ). Quem sofre dessa doença relata frustração e incapacidade de obter o máximo de si mesmo. Como tantos outros males da vida moderna, a DSACDAD não é fatal, mas compromete o equilíbrio e a felicidade dos pacientes.

Felizmente, a indústria farmacêutica já tem a panacéia capaz de curar a DSACDAD: é o Havidol – termo que, em inglês, se pronuncia como have it all , ou “consiga tudo”. Seu componente ativo ( avafynetyme – que se lê como have a fine time , ou “divirta-se”) age sobre os receptores de um suposto hormônio recém-descoberto chamado hedonina e induz a sensação de bem-estar, o aumento da auto-estima e da capacidade de consumir.

A DSACDAD e o Havidol são frutos da imaginação da artista plástica australiana Justine Cooper e foram apresentados em uma galeria em Nova York. A exposição incluía desde a embalagem do medicamento (disponível em pílulas de 20 mg ou supositórios, a critério do freguês) aos cartazes da campanha publicitária e outras peças de marketing , como uma grande pílula dourada e camisetas promocionais.

Contra-indicações e efeitos colaterais
A exposição esteve em cartaz até o último dia 17, mas o site criado para a promoção da droga – www.havidol.com – continua no ar por tempo indeterminado. A página traz depoimentos de pacientes que tomaram o medicamento e um teste para o visitante avaliar se tem a DSACDAD, além de informações detalhadas sobre a doença e a composição do fármaco – há inclusive uma extensa bula com contra-indicações, interações medicamentosas e outras seções.

O que mais chama a atenção são os efeitos colaterais, que incluem “sorriso terminal”, “perversão do gosto” e “consumo induzido pela impulsividade”. Por incrível que pareça, não estamos distantes da ficção. “Com exceção da ‘comunicação entre espécies’, sugerida por um amigo, os efeitos colaterais foram inspirados naqueles provocados por drogas reais”, conta Justine Cooper em entrevista à CH On-line .

Tela de abertura do site promocional da droga Havidol (foto: Justine Cooper / www.havidol.com).

Por trás do trabalho, há uma crítica à lógica da indústria farmacêutica e à sociedade contemporânea. “Fui inspirada pela proliferação de distúrbios que vemos atualmente”, conta Cooper. “Queria refletir sobre a forma como procuramos soluções para problemas do dia-a-dia e sobre a forma como os medicamentos são prescritos em excesso para pessoas que não precisam deles.”

A obra tem sido bem recebida, inclusive entre os profissionais da saúde – a artista conta que, entre os compradores das camisetas do Havidol (que são de fato vendidas no site), a maior parte é de químicos, farmacêuticos e psicólogos. Entre os e-mails que ela recebe, há os leitores que entram no espírito da brincadeira, como a mulher que relatou o ataque de riso que acometeu seu marido após tomar a droga. Mas há também quem alegue que a artista está fazendo pilhéria com o sofrimento real de pessoas que têm depressão e outras doenças.

E há até quem parece não ter percebido se tratar de uma paródia. “Um sujeito me perguntou se eu precisava de um representante de vendas na Flórida, e ele estava falando sério”, conta a artista. “E me escreveram também querendo saber se eu queria anunciar o Havidol no periódico  Annals of Oncology !”

Ciência e arte

Foto de RAPT II, instalação de 1998 de Justine Cooper. A obra é composta por 76 imagens feitas por ressonância magnética reunidas de forma a montar o corpo da artista (foto: Justine Cooper / www.justinecooper.com).

A interface entre ciência e arte não é nova na obra de Justine Cooper, que é filha de cientistas e freqüentava na infância o laboratório do pai. Ela foi a primeira artista residente do Museu Americano de História Natural e costuma trabalhar com imagens produzidas com equipamentos de laboratório, como aparelhos de ressonância magnética e microscópios eletrônicos. Atualmente, tem obras apresentadas na exposição A arte e o artifício da ciência, no Novo México (EUA). Uma relação com suas principais obras pode ser consultada em www.justinecooper.com

 

Cooper pretende dar continuidade ao projeto Havidol. Ela tem planos de fazer um vídeo sobre o processo de criação da droga. Mas não seria um making ofda obra de arte: “a idéia é fazer um documentário ficcional que inclua depoimentos de experts

e pacientes e relate o desenvolvimento do fármaco em laboratório.” A idéia, no entanto, depende de recursos. “Sou uma artista profissional, que submete propostas de financiamento a várias instituições, exatamente como um cientista faz”, conta Cooper. “A diferença é que os cientistas costumam conseguir muito mais dinheiro!”

Bernardo Esteves
Ciência Hoje On-line
29/03/2007