Um mistério chamado lítio

Embora o lítio seja usado há décadas como um controlador de humor para tratar pacientes que sofrem do transtorno bipolar, os mecanismos de sua ação no organismo ainda são desconhecidos. Para entender como esse elemento químico age sobre o cérebro e otimizar o tratamento do transtorno, a bióloga Mónica Montero Lomelí, do Instituto de Bioquímica Médica da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), vem realizando há dez anos uma série de pesquisas sobre o metal. O mais recente desses estudos avaliou a ação do lítio sobre o metabolismo de células humanas e confirmou resultados anteriores, realizados com leveduras (seres eucariontes cujas células se assemelham às humanas em alguns aspectos).

 
Essas pesquisas indicavam que o lítio atua como um inibidor da ação da fosfoglicomutase (PGM, na sigla em inglês). A PGM é uma enzima que atua na via de síntese do glicogênio a partir de moléculas de glicose ou galactose (o glicogênio é uma molécula que funciona como reserva de energia para as células). Para a ativação dessa enzima, é necessário que íons de magnésio, presentes no meio celular, se liguem a ela. É justamente nesse processo que os íons de lítio intervêm: eles se acoplam à PGM no lugar que deveria ser ocupado pelos íons de magnésio e, com isso, inibem a atividade da enzima.
 
Para confirmar esses resultados em estudos com células humanas, a pesquisadora coletou sangue de indivíduos entre 16 e 60 anos, de ambos os sexos, divididos em três grupos. Os dois primeiros incluíam portadores do transtorno bipolar, tratados com lítio, em um caso, e com outros medicamentos, no outro; no terceiro grupo (controle), estavam indivíduos que não manifestavam a doença. Em laboratório, foi testada a atividade enzimática de PGM em amostras de sangue de indivíduos dos três grupos.
 
Os pacientes tratados com lítio apresentaram a maior média de atividade da PGM entre os três grupos. Já os indivíduos tratados com outras drogas apresentaram a menor atividade da enzima. Esse resultado corrobora os testes anteriores com leveduras, nos quais a atividade da PGM se mostrou maior nas células submetidas ao lítio. “Ainda não temos explicação para esse fenômeno, mas imaginamos que a inibição causada pelo lítio de alguma forma incentive a síntese da enzima  PGM nas células”, pondera Lomelí.
 
Os resultados já obtidos ainda não permitem conclusões sobre a ação do lítio na melhora dos pacientes, mas abrem o caminho para novos estudos ao indicar uma possível ligação entre o metabolismo do glicogênio e o transtorno bipolar. “O estudo do metabolismo celular está voltando a ter lugar de destaque nas pesquisas na área de bioquímica”, avalia Lomelí. “Esse campo de estudos havia ficado esquecido, ofuscado pelo crescimento da genética.”
 

Estudos sobre o metabolismo celular podem ajudar os cientistas a entender melhor os mecanismos de ação do lítio nas células e, assim, desenvolver drogas que ajam apenas sobre as enzimas envolvidas no distúrbio. Entre os inconvenientes do lítio – que é usado também contra o mal de Alzheimer em caráter experimental – estão seus efeitos colaterais (como tremores, grande aumento de peso e doenças renais em alguns casos) e sua toxicidade em concentrações altas, que obriga os pacientes a realizarem exames de sangue periódicos. 

Marcelo Garcia
Ciência Hoje On-line
23/03/05