Uma necessidade básica

O setor de saneamento brasileiro sofre de um problema crônico. Nos últimos anos, tem sobrado dinheiro destinado a obras de ampliação da rede de distribuição de água e coleta de esgoto. Mas isso não significa que há investimento em demasia: o que ocorre é escassez de projetos para utilizar os recursos.

Segundo um levantamento do engenheiro civil Ary Haro dos Anjos Jr., da Universidade Federal do Paraná (UFPR), entre 2003 e 2008, de cada R$ 3 liberados do Fundo de Garantia do Tempo de Serviço (FGTS) para obras de saneamento, o Brasil conseguiu investir apenas R$ 1. Do total de recursos previstos para o setor no Orçamento Geral da União, o aproveitamento foi ainda menor: apenas R$ 1 foi gasto de cada R$ 12.

De cada R$ 12 liberados pela União para obras de saneamento, apenas R$ 1 foi aplicado

Parte do dinheiro investido ainda corre o risco de ser mal aplicado, seja intencionalmente – por corrupção de alguma das partes envolvidas no projeto, por exemplo – ou por deficiência no gerenciamento das obras.

A origem desse quadro está no ensino universitário, avalia Anjos Jr. Para ele, o país carece de instrumentos adequados para formar profissionais que lidem com a gestão de obras de saneamento, atividade que envolve níveis complexos de interdisciplinaridade.

“Um projeto de saneamento tem demandas e consequências em diversas áreas”, explica. “Qualquer obra no setor envolve aspectos de administração, economia, engenharia, arquitetura, gestão ambiental, planejamento urbano e social, além de questões ligadas à saúde pública e educação sanitária.”

Os currículos das universidades, muito fragmentados por área, não formam gestores de saneamento na avaliação do engenheiro civil, que tem mestrado em administração pela Baldwin-Wallace College, dos Estados Unidos. “Em nível de pós-graduação, há cursos que formam técnicos e outros que formam gestores – falta uma consciência de interdisciplinaridade.”

O problema não é novo, mas fica mais evidente à medida que o Brasil se desenvolve economicamente. “Os recursos disponibilizados para o setor aumentam, mas a execução de projetos não acompanha essa evolução.”

Favela
Nas favelas brasileiras, muita gente vive sem saneamento básico. Além de investimento, o país precisa de profissionais mais qualificados e projetos mais interdisciplinares para atacar melhor o problema. (foto: Miriam C. de Souza/ CC BY-NC-ND 2.0)

PAC

Lançado em 2007, a primeira fase do Programa de Aceleração do Crescimento (PAC 1) do governo federal previa a aplicação de R$ 40 bilhões para obras de saneamento básico. A meta era que até 2010 7,3 milhões de domicílios fossem incluídos na rede de esgoto e mais 7 milhões de casas passassem a ser atendidas por abastecimento de água.

No entanto, segundo dados divulgados pelo secretário nacional de saneamento ambiental do Ministério das Cidades, Leodegar Tiscoski, dois em cada dez projetos de saneamento do PAC 1 sequer tiveram início por falta de qualidade técnica.

Tiscoski afirmou, em entrevista à Agência Brasil, que parte dos problemas enfrentados no setor de saneamento se deve ao histórico raciocínio compartilhado por alguns governantes de que “esgoto não dá voto”. Outra causa seria um “apagão da mão de obra da engenharia para projetos de saneamento”.

Gestão estratégica do saneamentoDiante desse cenário, em abril, Ary Haro dos Anjos Jr. lançou, pela editora Manole, o livro Gestão estratégica do saneamento, que, como o nome diz, tem o propósito de auxiliar na formação de gestores de saneamento. Trata-se de uma das primeiras obras de referência no assunto.

O engenheiro da UFPR considera errada a visão de que, se um recurso liberado deixa de ser investido, a União estaria economizando dinheiro. “Há um desperdício, não financeiro, mas social”, diz. “Desperdiça-se a oportunidade de melhorar a qualidade de vida da população; de reduzir a mortalidade infantil.”

Um estudo dos economistas suíços Guy Hutton e Laurence Haller, divulgado em 2004 pela Organização Mundial da Saúde, mostra que, em países em desenvolvimento, cada dólar efetivamente investido em saneamento reverte-se, em média, em uma economia de 5 a 28 dólares em gastos com saúde.

A carência de gestores preparados não é exclusividade do Brasil e pode ser observada em quase todo o mundo

Anjos Jr. lida há mais de 30 anos com o setor de saneamento e já atuou em diversos países como consultor do Banco Mundial, da Organização Mundial da Saúde (OMS) e do Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (PNUD/ONU).

Segundo ele, a carência de gestores preparados não é exclusividade do Brasil e pode ser observada em quase todo o mundo. Alguns países, como a Holanda, no entanto, se destacam nessa área por iniciativas de formação que mesclam o conhecimento técnico com aspectos específicos de administração de saneamento.

Panorama
De acordo com a última pesquisa nacional de saneamento básico do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística, referente ao ano de 2008, apenas 28,5% dos municípios do país têm tratamento de esgoto. O estado de São Paulo é o que apresenta melhores condições de esgotamento sanitário, com 78,4% dos municípios cobertos com o serviço, enquanto o Maranhão apresenta o pior quadro: o índice é de somente 1,4%. Isso porque entram na conta até municípios em que apenas parte de um distrito tem tratamento de esgoto.

Célio Yano
Ciência Hoje On-line/ PR