Vírus da varíola na mira

Volta a ser discutido o destino dos dois últimos estoques do vírus da varíola, doença que matou 500 milhões de pessoas somente no século 20. Depois de vinte anos de adiamento, a Organização Mundial da Saúde (OMS) deve fazer uma assembleia em maio para decidir se vai ou não marcar uma nova data para a destruição das amostras, que estão sob seu controle em laboratórios nos Estados Unidos e Rússia.

A OMS deve se reunir em maio para decidir se vai ou não marcar uma nova data para a destruição das amostras do vírus da varíola

A varíola foi erradicada em 1980. Na ocasião, representantes de diversos países se pronunciaram a favor de exterminar todos os vírus Orthopoxvirus variolae vivos em laboratórios. Apenas dois estoques foram preservados: um no centro russo de pesquisa Vector Institute e outro no Centro de Controle e Prevenção de Doenças dos Estados Unidos da América. Representantes dos dois países alegaram que as amostras deviam ser preservadas para pesquisas de novas vacinas e medicamentos.

Em 2007, a OMS iniciou uma revisão das pesquisas feitas com o vírus in vitro desde 1999. Os resultados preliminares, apresentados em outubro do ano passado, apontam muitos avanços, como o sequenciamento de 48 cadeias de genes do vírus e o desenvolvimento de novas vacinas e métodos de diagnóstico.

Por outro lado, o relatório oficial, apresentado em janeiro, indica que estão atrasadas as pesquisas sobre o modelo de infecção da chamada varíola do macaco, variante mais branda da doença que, apesar do nome, é transmitida por roedores.

Segundo o virologista estadunidense Jack Woodall, professor aposentado do Instituto de Bioquímica da Universidade Federal do Rio de Janeiro, esta não seria uma razão para se manter os estoques de O. variolae. “O vírus utilizado nas vacinas atuais de varíola, o Vaccinia, também protege os humanos contra a varíola do macaco”, explica.

Para o pesquisador, a destruição dos estoques é uma questão de segurança pública. “Os perigos são maiores do que os benefícios de continuar com as pesquisas”, diz ele. “Os laboratórios que ainda estão trabalhando com o vírus podem ser de alta biossegurança, mas nada evita que um pesquisador se contamine lá dentro e leve a doença para casa, iniciando uma epidemia.” Woodal destaca que essa situação não é apenas hipotética e já aconteceu em 1977.

Arma biológica

Vacina contra a varíola
A primeira vacina contra a varíola foi criada em 1796. No entanto, a doença só foi erradicada em 1980, depois de matar 500 milhões de pessoas durante o século 20. (foto: James Gathany/ CDC)

A varíola também poderia ser usada como arma biológica de grande impacto, pois hoje a vacinação em massa não é mais feita e poucas pessoas estão imunizadas.

“A varíola tem um tempo de disseminação muito adequado para ataques terroristas”, explica o historiador especializado em saúde Gilberto Hochman, da Fundação Oswaldo Cruz. “Assim como pode haver um homem-bomba, pode existir um homem-varíola. Basta uma pessoa se inocular com o vírus e entrar em um aeroporto que o vírus já começa a ser transmitido.”

Segundo Hochman, além do uso por terroristas, a varíola corre o risco de ser utilizada como arma militar. Um dado que corrobora essa possibilidade é o fato de os soldados estadunidenses ainda serem vacinados contra a doença. Além disso, a OMS e outras instituições de pesquisa têm simulações de ataques biológicos com varíola, o que mostra que esse não é um cenário improvável.

A ameaça de um ataque biológico foi um dos argumentos usados para o adiamento da destruição dos estoques do vírus em 2002. Pesquisadores que compunham o quadro da OMS alegavam que as amostras seriam úteis para o desenvolvimento de novos remédios caso fosse preciso combater uma epidemia surpresa de varíola.

Fonte de pesquisas

Hoje a posição da OMS parece ser favorável à destruição. No entanto, a epidemiologista Erna Kroon, coordenadora do Laboratório de Vírus da Universidade Federal de Minas Gerais, acredita que os estoques do vírus não devem ser destruídos por constituírem fonte de muitas pesquisas.

“Destruir os estoques não impede que alguém isole o vírus de um cadávercongelado ou que pesquisas com genes sintéticos sejam feitas”

A pesquisadora argumenta que, se os estoques estão bem guardados, não há risco em mantê-los. E ressalta que a destruição não exclui a possibilidade de existirem outras amostras ilegais pelo mundo e, até mesmo, de o vírus ainda resistir na natureza. “Destruir os estoques não impede que alguém isole o vírus de um cadáver congelado ou que pesquisas com genes sintéticos sejam feitas”, alega.

Até hoje, apenas alguns genes do vírus da varíola foram identificados. Em 2005, a sintetização do DNA completo do O. variolae foi proibida pela OMS. Mas, para Kroon, nada garante que essa resolução seja cumprida.

Já Woodall defende que a possibilidade de o vírus voltar a circular devido ao terrorismo ou a causas naturais é muito remota. “As últimas vítimas de varíola foram enterradas em países tropicais e até hoje não houve novas ocorrências da doença”, conta.

O pesquisador lembra ainda que, para sintetizar a primeira bactéria em laboratório, feito anunciado em maio do ano passado, foi preciso uma equipe de mais de 20 pesquisadores e tecnologia de ponta, estrutura a que terroristas não teriam acesso.

Ecologia e ética

A extinção proposital de uma espécie, mesmo que de um vírus, suscita questões éticas e ecológicas

A extinção proposital de uma espécie, mesmo que de um vírus, suscita ainda questões éticas e ecológicas. Kroon acredita que a eliminação da varíola não teria, a princípio, impactos negativos para o equilíbrio ecológico.

Já Woodall é mais veemente em afirmar que não há problemas éticos ou ecológicos na destruição do vírus. “Se a falta do vírus na natureza causasse algum impacto negativo, ele já teria se manifestado há tempos”, comenta. E finaliza: “Na minha opinião, a raça humana tem todo o direito de eliminar qualquer ameaça a sua sobrevivência – é uma lei natural e é nosso dever em relação às gerações futuras.”

Sofia Moutinho

Ciência Hoje On-line