Copas de árvores e rios amarronzados se estendem até onde a vista alcança, num mar verde interminável. Quase três horas em um avião turbo-hélice, sobrevoando a natureza em seu estado mais primitivo, para chegar à tríplice fronteira entre Brasil, Peru e Colômbia, uma região que passa a sensação de lutar para se consolidar sem perder a conexão com a floresta ao seu redor. A experiência curiosa de dois jornalistas do Rio de Janeiro no Alto Solimões envolveu garrafas de gasolina que parecem de mel, sapos alucinógenos, um enxame de motocicletas desgovernadas e a sensação de presenciar a história sendo escrita.
A viagem foi longa. Do Rio de Janeiro a Benjamin Constant (Amazonas), cerca de 12 horas entre decolagens, pousos e esperas. Ao descer em Tabatinga (já no Alto Solimões), um calor abafado – era possível sentir a umidade no ar. Mais meia hora na chamada ‘baleeira’ – um barco pequeno, para cerca de 20 pessoas, e relativamente rápido – pelo rio Solimões e chegamos ao nosso destino final: uma cidadezinha simples, de casas baixas, onde o celular mal funciona, não há escola particular ou posto de gasolina. Aliás, uma das primeiras recomendações do bem humorado diretor do Instituto de Natureza e Cultura, unidade da Universidade Federal do Amazonas (Ufam) na cidade, Agno Acioli, foi essa: “Essas garrafas vendidas no meio da rua, cuidado! Não é mel, não, é gasolina!”
Não é, mas poderia ser, considerando o enxame de motos que circula na cidade de 33 mil habitantes. A primeira visão do superlotado estacionamento de motocicletas do campus foi impactante. Francisco, taxista local que nos levou para cima e para baixo, explica: como são relativamente baratas, as motos aos poucos substituíram burros e bicicletas como meio de locomoção mais popular na região. Curioso é que, sem órgão local de trânsito, o vaivém é uma bagunça, sem mão ou contramão, mas todos acabam se entendendo e usam a criatividade para carregar três, quatro pessoas – e todo tipo de carga – no pequeno veículo.
Vizinhos próximos
Na cidade, a proximidade da floresta fica bem evidente – no silêncio, na natureza irreprimível e nas frutas típicas, como a pupunha e a mapati, a uva da Amazônia. Imaginem a diversidade de sucos! Pois é, mas fomos gentilmente orientados a evitar o consumo em locais públicos, já que 90% da cidade não têm saneamento adequado.
A fronteira também se faz presente: é espanhol falado nas ruas, restaurante peruano na esquina e o chicharrón – prato de frango, peixe ou camarão empanados, servido com papas (batatas) fritas e arroz chaufa (misturado com ovos mexidos, pedaços de carne e molho de soja) – em todo lugar. Aliás, ainda no aspecto culinário, foi curioso constatar que, apesar do calor, os caldos (verde, de mocotó, de todos os tipos) fazem sucesso por lá.
Uma rápida travessia de rio, para Tabatinga ou para as terras das nações hermanas, é um espetáculo à parte, com floresta de ambos os lados e uma imensidão azul acima de nós. Da própria Tabatinga, também é fácil cruzar a fronteira com a Colômbia de carro, moto ou a pé. Basta passar por alguns cavaletes dispostos no meio da rua para chegar à cidade colombiana de Letícia, uma área de livre comércio onde os brasileiros compram de tudo: perfumes, brinquedos, fogões, televisões, celulares, laptops e, claro, motos.
Drogas e venenos da Amazônia
A facilidade para circular entre os dois países é até preocupante: apesar da presença de soldados das Forças Armadas por lá, nada de revista, ‘cara-crachá’ nos documentos ou mesmo uma simples pergunta: “vai aonde, companheiro?”. O tráfico de drogas, como nos conta um dos professores da Ufam, é uma ‘atividade econômica informal’ comum no Alto Solimões.
Por falar em ‘drogas’, também ouvimos relatos das ‘potencialidades’ da floresta. Já ouviram falar do kambô? Ele já apareceu algumas vezes aqui no Sudeste do país, inclusive associado a casos mortais. Trata-se de um sapo com um poderoso e alucinógeno veneno que o antropólogo Juan Carlos Peña, da Ufam de Benjamin Constant, experimentou em suas imersões nas tribos amazônicas. “Foi a pior experiência da minha vida; fiz três vezes”, conta rindo. Segundo ele, o ritual com o veneno do sapo é feito pelas tribos para dar energia e disposição aos guerreiros indígenas.
Outra história para ‘assustar turista’: o próprio Juan lembra de um aventureiro europeu que chegou à região em busca de uma espécie de sapo com veneno alucinógeno e se embrenhou na mata até achar o animal. A expedição acabou aí, já que uma lambida na barriga do bicho foi suficiente para matar o intrépido explorador.
Entre os muitos episódios contados pelo colombiano, outro incidente de impressionar, envolvendo uma pequena e venenosa aranha e uma pesquisadora estrangeira: depois de uma picada furtiva, a visitante só foi salva por uma série de coincidências que permitiram sua rápida remoção até Tabatinga e pela existência, naquele momento, do antídoto no hospital da região. ‘História de pesquisador’? Bom, impossível negar que passamos a revistar melhor o quarto antes de dormir. Arriscar pra quê?
Distante, diferente e exemplar
Em meio a tantas situações inusitadas, saltou aos olhos a dedicação de pessoas que atuam para construir o futuro da região. De forma geral, os professores e alunos que conhecemos deixaram transparecer em suas falas um nítido compromisso com o desenvolvimento local – e é bom lembrar que, entre os docentes, quase nenhum é sequer originário do Alto Solimões, apesar de muitos serem de outras partes da Amazônia (como Manaus, Santarém e Colômbia).
Tal compromisso também se evidencia na crítica nem sempre explícita aos colegas que passam no concurso da Ufam, vão para o campus e partem na primeira oportunidade – por uma outra aprovação ou, no pior dos mundos, levando a vaga de professor em alguma transferência.
Muito além de estarem em busca de um emprego público, as pessoas que ouvimos realmente adotaram a região, com a certeza de que vale a pena abrir mão de certas comodidades pela chance de escrever a história da pesquisa e do ensino nesse rincão da Amazônia. Lá se instalaram com suas famílias, a despeito da má qualidade de serviços como educação e saúde. Afinal, como argumenta Ivanilce Silva, uma das professoras do campus, se eles não ficarem lá, como podem ter esperança de mudar essa realidade um dia? Para nós, ficou a certeza de que o futuro do Alto Solimões já está mudando.
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Marcelo Garcia
Thaís Fernandes*
Ciência Hoje On-line
*Os jornalistas viajaram a Benjamin Constant a convite da Rede Nacional de Ensino e Pesquisa.