Muito mais que sobrevivência

Embora a agricultura familiar seja uma atividade econômica comum em diversas regiões do Brasil, nem sempre o conhecimento tradicional impregnado na prática recebe o valor que deveria. Um projeto realizado pela Universidade Federal do Amazonas (Ufam) no Alto Solimões pretende formar estudantes – futuros pesquisadores, gestores ou líderes em suas comunidades – para que sejam capazes justamente de entender a complexidade dos sistemas locais e atuar na valorização do saber desses agricultores e no desenvolvimento de políticas públicas para a região.   

Silva: “Temos populações que vivem aqui e mantêm seu ambiente preservado há muito tempo, o que mostra que em suas práticas há grande valor”

O trabalho, iniciado em 2012, é realizado pelo Instituto de Natureza e Cultura, unidade da Ufam localizada no município de Benjamin Constant, na fronteira do Brasil com o Peru e a Colômbia. Naquele ano, participaram da iniciativa 10 bolsistas da universidade, que estudaram as práticas dos agricultores ribeirinhos e as especificidades de produzir na região. “Na Amazônia, o aprendizado de outras áreas do país pouco se aplica”, explica a engenheira agrônoma Ivanilce Silva, coordenadora do projeto. “Além disso, temos populações que vivem aqui e mantêm seu ambiente preservado há muito tempo, o que mostra que em suas práticas há grande valor.”

Confira mais sobre o papel da agricultura familiar nos sistemas produtivos da região amazônica

A ideia do projeto é aliar conhecimentos acadêmicos e tradicionais para melhorar a qualidade de vida local. “Mas há certa resistência em valorizar o saber tradicional dentro do meio acadêmico; a academia se vê como detentora do conhecimento”, critica Silva. “Nós propomos outra visão: um diálogo de saberes em que os dois lados são valorizados e que visa melhorar a vida dessas populações.”

Durante a formação, os estudantes podem entender melhor as necessidades dos grupos tradicionais e a importância de garantir a eles acesso a serviços como a educação. “Se um agricultor mora a 12 horas de barco da cidade e manda o filho estudar aqui, passa a gastar boa parte da produção fora da comunidade e perde a importante mão de obra familiar”, explica Diones Souza, aluno do curso de ciências agrárias e do ambiente e bolsista do projeto. “Ele precisa de escola e de outros serviços lá; é necessário fortalecer essa relação local. Se ele tiver que migrar para a cidade, provavelmente acabará sem emprego e morando na periferia.”

Oficina agricultores
Em oficinas, os estudantes do projeto puderam conhecer as especificidades da agricultura familiar, discutir as melhores maneiras de se aproximar e de trabalhar com esses agricultores e entender a importância do conhecimento tradicional. (foto: Projeto assessoramento participativo a agricultores familiares da região do Alto Solimões/ Núcleo de Estudos Rurais e Urbanos Amazônicos/ Núcleo de Etnoecologia da Amazônia Brasileira)

Em seu primeiro ano, a iniciativa dedicou-se apenas à capacitação dos alunos. A atuação junto às comunidades está programada, mas depende da obtenção de verbas para o deslocamento na região. Mesmo sem esse contato direto, Silva já identifica possíveis questões que podem ser abordadas, como a dificuldade de acesso dos agricultores à aposentadoria – ela projeta a criação de materiais que orientem a população.

O trabalho de formação também promoveu ações que podem facilitar a aproximação com as comunidades tradicionais: por exemplo, além do espanhol, os alunos estão tendo aulas da língua ticuna, falada por um grupo indígena bastante comum na região.

45 tipos de frutas

Uma questão muito combatida pelo projeto é a associação da agricultura familiar com a ideia de simples subsistência. “Na verdade, temos grande diversidade, uma alimentação variada e uma agricultura que tem um grande componente de cooperação e de conhecimento passado de pai para filho”, afirma Souza, que é filho de agricultores. Silva completa: “Uma criança aqui tem acesso a cerca de 45 tipos diferentes de frutas durante o ano. Uma criança na área urbana tem isso? Não, é maçã o ano inteiro e não há relação alguma com o ambiente.”

“A educação aqui parece estar de costas para a comunidade e para a floresta, não há relação com o ambiente. Mas o ambiente está todo aqui, como não aproveitar essa riqueza?”

A engenheira agrônoma comemora a mudança de perspectiva que tem observado nos alunos participantes em relação ao papel que podem desempenhar em suas comunidades. Para ela, a universidade tem o dever de formar os futuros gestores da região e de promover uma grande mudança no ensino no Alto Solimões, que não dá conta da diversidade local. “A educação aqui parece estar de costas para a comunidade e para a floresta, não há relação com o ambiente”, critica. E indaga: “Mas o ambiente está todo aqui, como não aproveitar essa riqueza?”

Essa missão, no entanto, esbarra na falta de estrutura, um problema que muitos professores ainda precisam enfrentar no interior do país. “Se, por um lado, a ampliação dos campi universitários foi extremamente positiva, por outro as pessoas que vêm pra cá não têm acesso a serviços de qualidade”, lamenta. “Mas, ao mesmo tempo, elas têm a oportunidade de fazer parte da história da pesquisa e da extensão em um lugar tão necessitado como este.”

Marcelo Garcia*
Ciência Hoje On-line

*O jornalista viajou a Benjamin Constant a convite da Rede Nacional de Ensino e Pesquisa.