Um neurocientista enrustido

Uma prova importante no dia seguinte. O que você sonha na noite anterior? Primeira hipótese: que uma das questões é sobre um tema aprendido no início do semestre. Segunda: que tirou a nota máxima e foi indicado como melhor aluno do ano. Terceira: ao chegar na sala, você percebe que esqueceu caneta, lápis, papel e, inclusive, as roupas! E mais: a questão que você sonhou era justamente a que caiu na prova, no dia seguinte.

As quatro situações acima seriam prato cheio para um divã. Desde o século 19, quando um certo neurologista austríaco elaborou proposições perturbadoras sobre o papel e os significados dos sonhos, a psicanálise foi a área que mais se dedicou a estudá-los. A partir do final da década de 1990, no entanto, um outro campo do saber resolveu adentrar esse tema um tanto renegado pela comunidade científica tradicional: a neurociência.

Os estudos de Sidarta contrariam as convicções de muitos cientistas: Freud estava certo, afinal

Um dos maiores responsáveis no Brasil por pesquisas nessa área é o neurocientista Sidarta Ribeiro, chefe de laboratório do Instituto Internacional de Neurociências de Natal Edmond e Lily Safra (IINN-ELS), vinculado à Universidade Federal do Rio Grande do Norte.

No IINN, Ribeiro e outros pesquisadores desenvolvem estudos que seguem uma linha recente da neurociência e cujas conclusões contrariam as convicções de muitos cientistas: Freud estava certo, afinal.

Ele dizia, por exemplo, que sonhos representam a satisfação de desejos. “Na linguagem da neurociência, isso significaria que sonhos concatenam fragmentos de memórias de forma a simular expectativas futuras de recompensa e punição mediadas por dopamina”, explica Ribeiro, em conferência durante a reunião anual da SBPC, que acontece esta semana em Natal.

Veja abaixo a vídeo-entrevista que Sidarta concedeu a CH On-line durante o primeiro dia de evento

Mas, afinal, como podemos aplicar os novos estudos da neurociência nas situações apresentadas no primeiro parágrafo? E como Freud entra nisso tudo? Vamos por partes.

Sonhos e oráculos

Imaginemos que o sonho referente à prova do dia seguinte tenha sido a respeito do tema de uma das questões. Um estudo conduzido pelo mestrando Rafael Scott, do IINN, fez uma pesquisa com vestibulandos. Seus resultados: aqueles que sonharam com a prova do vestibular tiveram um desempenho melhor do que aqueles que não sonharam.

Scott investigou ainda como o caráter dos sonhos influenciava o desempenho no vestibular. Entre os vestibulandos que sonharam com a prova, aqueles que tiveram sonhos ‘neutros’ – sobre o tema de uma questão, por exemplo – foram ainda mais bem sucedidos do que os que tiveram pesadelos ou sonhos ‘bons’ sobre a prova. “Sonhos bons simulam a recompensa, mas não a prova em si”, explica Ribeiro.

Vestibulandos que sonharam com a prova tiveram um desempenho melhor do que aqueles que não sonharam

No caso do sonho ruim – chegar sem material e nu na sala de aula –, a interpretação da neurociência é que pesadelos são sonhos prototípicos para alertar para possíveis perigos. Essa característica, para Ribeiro, é algo que permeia todos os animais, principalmente os mamíferos.

“Os mamíferos são os animais com mais tempo de sonho REM [sigla em inglês para ‘movimento rápido dos olhos’, nome dado à fase do sono em que se sonha]. Seu repertório onírico é comum: sexo, morte, alimento, reprodução”, explica o neurocientista.

O fato de os mamíferos sonharem mais com futuros possíveis baseados em experiências passadas, portanto, seria um dos fatores envolvidos no fato de eles serem o grupo com maior flexibilidade comportamental.

Um psicanalista
Com o que sonharam na véspera os alunos que participaram desse processo seletivo? A resposta pode dar pistas de como eles se saíram na prova (foto: Cefet-MG / CC 2.0 BY-NC).

No caso da quarta hipótese, o que significa sonhar uma questão que de fato cairá na prova do dia seguinte? No senso comum, a ideia de que sonhos podem predizer o futuro é bastante arraigada. Pode parecer balela, mas essa crença não é tão descabida assim.

“Hoje, vemos que talvez realmente haja a capacidade de previsão do futuro, mas uma previsão probabilística” comenta Ribeiro. “Isso não é inspiração divina, mas uma tentativa do cérebro de, com base em experiências passadas, prever o futuro.”

Sonhar para dormir

Vamos supor agora que um aluno estude bastante nas semanas anteriores à prova. Qual a participação dos sonhos na fixação desse aprendizado? Um estudo desenvolvido por André Pantoja, Jean Faber e Ronkaly Carlos, também do IINN, resolveu investigar. Mas eles o fizeram de forma, digamos, menor ortodoxa: a partir de um jogo de computador bastante conhecido de matar monstros, chamado Doom.

Como contado pelo jornalista Marcelo Leite em matéria para revista Piauí, os pesquisadores analisaram o desempenho de 22 pessoas no jogo durante semanas, levando em conta também seus sonhos. Os jogadores que sonhavam com o jogo melhoravam mais seu desempenho com os dias do que os que não sonhavam. No entanto, a performance piorou entre aqueles que sonhavam muito com temas relacionados ao jogo.

“Essa situação reitera experimentalmente uma lei da biologia”, conta Ribeiro. “Quando não há nenhum estresse, se aprende. Se o estresse aumentar um pouco, o aprendizado é maior. No entanto, se a preocupação se tornar exagerada, a tendência é o aprendizado piorar”.

Dormir para aprender

A questão do aprendizado também parece ter relação com o sono, como mostraram resultados de uma pesquisa feita pelo próprio neurocientista com 250 crianças de duas escolas do Rio Grande do Norte. Após os alunos verem uma série de slides mostrados pelo pesquisador, parte deles dormiu, enquanto outra teve aulas, como acontece normalmente.

“O ideal seria alternar dez minutos de aula para duas horas de sono”

Cinco dias depois, Ribeiro e sua equipe voltaram às escolas e aplicaram um teste referente ao que tinham visto nos slides. As crianças que tinham dormido após a exibição tiveram um desempenho melhor (cerca de 68%) do que as que não tiraram a soneca (cerca de 58%).

A conclusão do neurocientista vai agradar à maioria dos estudantes. “O ideal seria alternar dez minutos de aula para duas horas de sono”, explica ele. Difícil será convencer os professores…

Os resultados desses estudos mais recentes realizados tanto por Ribeiro quanto por outros pesquisadores do IINN corroboram algumas das proposições de Freud. Ao revelar o papel dos sonhos e do sono para além do divã, eles conseguem enfim conciliar o ponto de vista de partidários da neurociência e da psicanálise. 


Isabela Fraga
Ciência Hoje / RJ

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