Debate aquecido

Depois da discussão acalorada sobre transgênicos no primeiro dia da reunião anual da SBPC, ontem foi a vez do aquecimento global. O papel do homem nas mudanças climáticas foi o tema escolhido para a segunda edição do “Ciência em ebulição” – um debate destinado a confrontar pontos de vista antagônicos sobre questões polêmicas da ciência.

De um lado do ringue, tínhamos a visão mais hegemônica sobre o tema – aquela que atribui o aumento da temperatura global verificado nas últimas décadas à ação do homem, por meio da emissão de gases do efeito-estufa (gás carbônico e metano, entre outros) lançados na atmosfera principalmente pela queima de combustíveis fósseis e pelo desmatamento.

O Instituto CiênciaHoje (ICH) tem uma posição clara sobre a questão em debate. Jápromovemos uma campanha na TV para chamar a atenção do público para o problema do aquecimento global e publicamos com frequência textos sobre os efeitos das mudanças climáticas – o artigo de capa da CH de julho, para nos limitarmos a um único exemplo, destaca os impactos do aquecimento global no Nordeste brasileiro.

Para defender esse ponto de vista, foi escalado um dos cientistas brasileiros mais destacados no estudo dessa questão – o físico Paulo Artaxo, professor da Universidade de São Paulo e membro do Painel Intergovernamental de Mudanças Climáticas (IPCC), time internacional de cientistas reunido pela Organização das Nações Unidas para investigar o tema.

Para confrontá-lo, o escolhido foi o meteorologista Ricardo Augusto Felicio, professor do Departamento de Geografia da Universidade de São Paulo (USP).

O formato da discussão – novidade nesta edição da reunião anual da SBPC – foi inspirado nos debates eleitorais. Cada debatedor teria vinte minutos para uma exposição inicial.

Em seguida, eles fariam perguntas um ao outro e receberiam questões do público, antes de fazer suas considerações finais – sempre com tempo limitado, marcado por um grande cronômetro digital postado no centro do palco.

Geleira
Em voo sobre a Groenlândia, avistam-se pedaços de gelo que se destacam de uma geleira no oceano Atlântico (foto: Tim Norris – CC NC-ND 2.0).

Confronto de argumentos

O debate propriamente dito – coberto em tempo real no Twitter pela CH On-line – não trouxe grandes surpresas na argumentação de ambos os lados. A exposição de Artaxo foi marcada pela apresentação de gráficos que mostram o paralelo entre o aumento da temperatura global e outros indicadores e o aumento da concentração de gases-estufa na atmosfera desde a Revolução Industrial, sublinhando a ação humana nas mudanças climáticas.

Artaxo: “A humanidade está mudando a face do nosso planeta de forma inequívoca”

“Todos os indicadores que mostrei têm tido crescimento exponencial, e isso tem um grande impacto sobre o funcionamento do sistema climático”, afirma Artaxo. “A humanidade está mudando a face do nosso planeta de forma inequívoca.”

Já a fala de Ricardo Felicio buscou contestar os dados apresentados por Artaxo. Na avaliação do meteorologista, o aumento da temperatura apontado pelo IPCC é fruto de uma variabilidade natural do sistema climático e pode ser atribuído a ciclos solares, vulcões e outros fatores naturais. Felicio vê ainda falhas nas projeções para o futuro do clima. “O modelo do IPCC tem erros epistemológicos graves”, acusa. “O que está errado é o modelo, não o clima.”

Para o meteorologista da USP, o grande barulho feito em torno do aquecimento global teria por fim impor ao mundo tecnologias verdes caras produzidas pelos países ricos e manter subjugadas as nações subdesenvolvidas. “Trata-se da imposição de um ecoimperialismo”, afirma.

Felicio: “O modelo do IPCC tem erros epistemológicos graves”

O confronto dos pontos de vista se exacerbou na hora do debate. O público se inflamou, e manifestações acaloradas contestaram os argumentos de Felicio. “Então os cientistas do IPCC são um bando de idiotas?”, disparou alguém da plateia. Do auditório, o glaciólogo Jefferson Simões pediu a palavra e manifestou seu repúdio à posição defendida pelo meteorologista da USP.

Discussão válida?

O debate mobilizou a plateia, mas até que ponto jogou luz sobre os aspectos da ciência do clima que dividem alguns cientistas? A discussão foi positiva ao mostrar que a ciência não é feita de certezas ou consensos e que a construção dos fatos científicos envolve uma árdua negociação entre os pesquisadores.

A polarização dos pontos de vista tendeu a resumir uma discussão complexa a uma única questão

Por outro lado, a polarização excessiva dos pontos de vista tendeu a resumir uma discussão complexa sobre o sistema climático do planeta a uma única questão – o aquecimento é ou não fruto da ação humana?

Em conversa com a CH On-line ao final do evento, Ricardo Felicio fez uma avaliação crítica sobre a forma como o debate foi conduzido. “O formato é válido, mas deveria haver mais pessoas dos dois lados, e não se fazer uma inquisição da pessoa que está lá debatendo”, avalia. “Em nenhum momento ofendi ninguém, mas fui desqualificado como pesquisador o tempo todo.”

O mediador do evento – o biólogo Adalberto Val, do Instituto Nacional de Pesquisas da Amazônia (Inpa) – atribui as queixas de Felicio à natureza pouco científica de suas alegações durante o debate.

Debate
Cronômetro mede o tempo de discurso de um dos debatedores do “Ciência em ebulição”: inspirado em debates eleitorais, formato foi novidade na reunião anual da SBPC e gerou debate acalorado sobre mudanças climáticas (foto: Thiago Camelo).

“Precisamos trazer para a discussão informações científicas, e não achismos ou dados que não tenham passado pelos processos de revisão científica”, alfineta o biólogo – que teve sua escolha como mediador criticada por Felício. Para o meteorologista, ele estava alinhado com os defensores da ideia de que o aquecimento global é devido à ação humana.

Em todo caso, Val se mostrou entusiasmado com o formato do “Ciência em ebulição”. “Esse modelo é fantástico e deveria ser implantado de forma definitiva nas reuniões anuais da SBPC”, avalia. “Sem sombra de dúvida, as cerca de 200 pessoas que assistiram ao debate saíram dali mais bem informadas do que estavam quando chegaram.”

Bernardo Esteves
Ciência Hoje On-line

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