Quando toda a química será verde?

As consequências do aumento da frequência e intensidade de variações climáticas provocadas pelo aquecimento global são claras evidências de que grandes mudanças no mundo ainda estão por vir. Cabe à comunidade científica assegurar um futuro sustentável, em que materiais e produtos químicos adotados pelas economias dos países sejam saudáveis e não tóxicos, e segmentos menos favorecidos da sociedade possam exercer seu papel de agentes de inovação e cidadania. Para isso, a química deve ser toda ela convertida em ‘química verde’.

Notícias sobre a assinatura de acordos internacionais e de compromissos assumidos por empresas e governos para estimular a proteção ambiental indicam, atualmente, uma tendência muito positiva para o desenvolvimento sustentável. A sociedade começa a perceber o que é a economia verde, a necessidade de reciclar e reaproveitar tudo o que é produzido, o papel das matérias-primas renováveis e dos biocombustíveis para reduzir a emissão de gases do efeito estufa. Mas nem sempre foi assim.

No final do século 18, a Revolução Industrial já havido introduzido profundas mudanças na economia e nas sociedades de determinados países da Europa e nos EUA. Entre elas, estavam o crescimento da população e do consumo, e o deslocamento das principais atividades produtivas do campo para as regiões urbanas.


No século 18, a química alcançou certa popularidade como fonte de técnicas para melhorar a eficiência da manufatura e a qualidade de materiais

Nessa época, a química alcançou certa popularidade como fonte de técnicas para melhorar a eficiência da manufatura e a qualidade de materiais. Essa percepção foi reforçada pelo seu emprego na produção de álcalis (substâncias largamente usadas em sabões e alvejantes de tecidos) e, mais tarde, pela síntese orgânica, que fornecia corantes e remédios mais eficazes e de menor preço do que os disponíveis na natureza.

A admiração perdurou mesmo depois da promulgação, em 1863, da primeira lei contra a poluição – consequência da fumaça escura e tóxica emitida por uma indústria química instalada na pequena Widnes, no interior da Inglaterra – e a despeito das críticas de escritores de meados do século 19 sobre as condições deploráveis em que vivia grande número de pessoas nas cidades.

 

Pobreza ou poluição?

A evidência de que esse crescimento estava gerando impactos irreversíveis sobre a natureza e o clima aumentava constantemente, levando um grupo de intelectuais conhecido como ‘clube de Roma’ a divulgar um estudo de grande repercussão sobre os ‘Limites do crescimento’ em meados do século passado (figura 1).

Figura 1. Estudo elaborado em 1972 pelo chamado ‘clube de Roma’ projetou um cenário catastrófico: o crescimento econômico levaria a uma redução drástica do número de habitantes do planeta devido à poluição, perda de terras cultiváveis e escassez de recursos energéticos

Publicado em 1972, o estudo se baseava em projeções da evolução da população humana e da taxa de exploração de recursos naturais até 2100. Indicava que o crescimento econômico levaria a uma redução drástica do número de habitantes do planeta devido à poluição, perda de terras cultiváveis e escassez de recursos energéticos. Assim, em sua visão, o mundo caminhava celeremente para o desastre.

Embora questionado e criticado, o estudo aumentou a tensão entre os países industrializados e aqueles em vias de desenvolvimento. O que era pior: a pobreza ou a poluição?

Os conflitos foram negociados a partir do conceito de desenvolvimento sustentável, definido no documento Nosso futuro comum (também conhecido como Relatório Brundtland), do Comitê Mundial sobre Meio Ambiente e Desenvolvimento da Organização das Nações Unidas (ONU). Trata-se do desenvolvimento que procura satisfazer as necessidades da geração atual sem comprometer a capacidade das gerações futuras de suprirem suas próprias demandas. Significa que agora, e no futuro, as pessoas possam atingir um nível satisfatório de desenvolvimento social e econômico, assim como de realização humana e cultural, fazendo um uso razoável dos recursos da Terra e preservando as espécies e seus ambientes naturais.


O volume crescente de acidentes e de contaminação provocados pela indústria química pôs um ponto final na sua admiração pela sociedade

O volume crescente de acidentes e de contaminação provocados pela indústria química pôs um ponto final na sua admiração pela sociedade. A mobilização da opinião pública gerou uma legislação restritiva na fabricação, no transporte e comercialização de produtos químicos na União Europeia e levou à criação de um órgão governamental para proteger o meio ambiente nos EUA.

Tais medidas inviabilizariam o funcionamento da indústria química, segundo seus porta-vozes. Alertaram também que resultariam num forte impacto sobre a economia e a sociedade do país. Após intensas negociações, acordou-se adotar práticas que fossem benignas em sua concepção (do inglês, benign by design).

 

Mudança de paradigma

Isso representou uma profunda mudança de paradigma. Em lugar da remoção dos poluentes que causam dano ambiental, os próprios processos de síntese seriam modificados de modo a reduzir a quantidade de potenciais contaminantes e promover a decomposição dos resíduos formados.

O termo ‘química verde’ foi empregado num programa proposto pela Agência de Proteção Ambiental (EPA), dos EUA, e pela Sociedade Norte-Americana de Química (ACS, na sigla em inglês), para promover a adoção dessa nova postura. Àquela altura, a União Internacional de Química Pura e Aplicada (Iupac), que já vinha estimulando a aplicação da química a questões relevantes para a sociedade, dedicaria sua Conferência de 1992 à ‘Química para o desenvolvimento sustentável’.


A importância de incorporar o desenvolvimento sustentável a iniciativas que já eram consideradas ‘verdes’ entrou em evidência na Conferência da ONU sobre o tema, a Rio-92

A importância de incorporar o desenvolvimento sustentável a iniciativas que já eram consideradas ‘verdes’ entrou em evidência na Conferência da ONU sobre o tema, a Rio-92. O encontro recebeu ampla cobertura da mídia e mobilizou ONGs que ocuparam o parque próximo ao Centro da cidade com palcos e tendas, realizando eventos de repercussão popular e ressonância no exterior. A comunidade científica entendeu prontamente seu significado, promovendo, logo nos anos seguintes, estudos sobre como essas questões afetariam a conservação da biodiversidade e o desenvolvimento de novos materiais.

 

Iniciativas no Brasil

A química verde passou a ser divulgada em publicações e cursos e, por iniciativa do Centro de Energias Alternativas e Meio Ambiente (Cenea), foi organizado um encontro sobre seus temas estratégicos e rotas tecnológicas em 2007. Como resultado, propôs-se criar uma rede nacional para aproveitar as vantagens oferecidas pelo Brasil para a química verde e assim fomentar suas aplicações na indústria. Tal sugestão recebeu, de imediato, apoio da Petrobras, que desenvolvia tecnologias usadas nas cadeias produtivas de biocombustíveis, e da Financiadora de Estudos e Projetos (Finep), que promovia a integração entre universidades e empresas.

Estas iniciativas foram reforçadas pelos planos da Associação Brasileira da Indústria Química (Abiquim) de enfrentar o crescente déficit na balança comercial de produtos químicos a partir do aumento da competitividade de empresas nacionais, a exemplo do ‘polietileno verde’, plástico obtido a partir de etanol com tecnologia própria. A capacitação para desenvolver processos a partir de matérias-primas renováveis seria estimulada por medidas estabelecidas em compromissos de longo prazo entre indústria e governo.

O Centro de Gestão e Estudos Estratégicos (CGEE) realizou uma ampla consulta ao meio acadêmico e empresarial sobre a formulação de iniciativas dessa natureza no país ao final de 2010. O trabalho sobre ‘Química verde no Brasil: 2010-2030’ se baseou em estudos de especialistas em temas prioritários e num roteiro para sua implantação. Previa o estabelecimento de uma rede de pesquisa e desenvolvimento (P&D) que contaria com uma escola e uma unidade de certificação e controle, sendo seus projetos e atividades executados por laboratórios associados.

Dificuldades de natureza institucional limitaram seu escopo e, atualmente, sua condução está a cargo da Escola Brasileira de Química Verde (EBQV), hospedada na Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), onde unidades de ciências, tecnologia e saúde já contam com professores e pesquisadores em química verde. O Programa de Pós-graduação em Tecnologia de Processos Químicos e Bioquímicos (TPQB) serviu como seu ponto focal enquanto integrantes de outras universidades, institutos de pesquisas e empresas foram convidados a participar da estruturação e execução dos trabalhos.

 

Novas atividades

As usinas de açúcar e álcool revelaram que existia grande potencial para transformá-las em unidades para a conversão de biomassa em energia ou matérias-primas químicas. Entretanto, enfrentariam forte resistência em modificar substancialmente suas práticas de muitos anos. A constatação foi relevante para o planejamento de novas atividades e levou à realização de encontros anuais em regiões próximas a essas unidades, como Campinas (SP), Três Lagoas (MS) e Uberlândia (MG). Tais encontros, assim como oficinas temáticas, foram realizados regularmente até o início da pandemia.

As atividades de ensino foram introduzidas na pós-graduação a partir de 2011. Atualmente, ‘Introdução à química verde’ é uma disciplina regular da Engenharia de Processos Químicos e Bioquímicos (EPQB/UFRJ). Nas primeiras edições, foram tratados a evolução histórica e o papel da EBQV no desenvolvimento sustentável na química e engenharia de processos. Hoje, a ênfase está em métricas aplicadas ao ciclo de vida de determinados produtos e abordagens sistêmicas de sustentabilidade em cadeias produtivas.


A divulgação da química verde para a sociedade ganhou grande impulso com o Ano Internacional da Química, em 2011

A divulgação da química verde para a sociedade ganhou grande impulso com o Ano Internacional da Química, em 2011. A Semana Nacional de Ciência e Tecnologia (SNCT) daquele ano incluiu o tema em sua programação e as atividades práticas receberam o apoio de empresas, viabilizando sua ampliação e diversificação em feiras e exposições nos anos seguintes. Isso também despertou interesse em organizar visitas de escolas aos laboratórios e oferecer módulos de ensino para seus professores.

As principais dificuldades no ensino de química verde, apontadas pelos participantes de cursos e visitas, resultaram no Global Innovation Imperative (Gii). O evento foi apoiado pela ACS e realizado em Belém (PA), em 2016. Reuniu especialistas internacionais em ‘Experimentos de química para locais remotos’, proporcionando importantes subsídios para incorporar conhecimentos sobre o saber local, combinar atividades remotas e presenciais e abordagens para estimular os alunos a improvisarem soluções para as deficiências encontradas em seu meio.

As atividades de química verde não estavam limitadas a projetos de P&D. A Confederação Nacional da Indústria, por meio do Serviço Nacional de Aprendizagem Industrial (Senai), estabeleceu três importantes Institutos de Inovação que atuam na área: Biomassa, Química Verde e Biossintéticos e Fibras. Além disso, empresas interessadas em desenvolver atividades nessa disciplina receberam forte apoio de agências de fomento.

Em 2014, foi lançado o Plano de Desenvolvimento e Inovação da Indústria Química (PADIQ). Sua primeira etapa foi um Estudo de Diversificação da Indústria Química Brasileira, no qual foram identificados mercados e matérias-primas competitivas baseadas em fontes potenciais ou em tecnologias emergentes. Matérias-primas renováveis, como cana-de-açúcar, óleos e gorduras e derivados de celulose, receberam tratamento aprofundado e projetos sobre seu aproveitamento foram selecionados para financiamento no período de 2016 a 2017.

Mais recentemente, a Empresa Brasileira de Pesquisa e Inovação Industrial (Embrapii) lançou um edital para competências tecnológicas em química verde.


Hoje, a sociedade tem certo nível de compreensão do que é desenvolvimento sustentável. Entretanto, o papel dos processos químicos que asseguram essa condição na produção dos bens e serviços é relativamente pouco conhecido

Hoje, a sociedade tem certo nível de compreensão do que é desenvolvimento sustentável. Entretanto, o papel dos processos químicos que asseguram essa condição na produção dos bens e serviços que respondem pelo padrão de vida e segurança das pessoas é relativamente pouco conhecido. É importante mostrar como a química e engenharia podem aumentar essa sustentabilidade e atrair novas gerações para seu ensino e pesquisa.

O Caderno de química verde foi lançado com essa finalidade em meados de 2016, divulgando artigos técnicos, notícias sobre cursos e eventos, trabalhos recentes de empresas e pesquisadores, assim como os depoimentos de personalidades que determinam os rumos de novas iniciativas.

 

Química verde pós-pandemia

Frio e gelo no Brasil, onda de calor no Canadá, inundações na Alemanha e queimadas na Sibéria – fenômenos conhecidos, mas que, neste ano, foram registrados em lugares diferentes do normal em menos de um mês. São consequências do aumento da frequência e intensidade de variações climáticas provocadas pelo aquecimento global e claras indicações de que grandes mudanças no mundo ainda estão por vir.

Mas nem todas podem ser atribuídas a fenômenos naturais. Os transtornos causados pelo encalhe de um navio cargueiro gigantesco que interrompeu a navegação no canal de Suez e a falta de semicondutores na indústria automobilística que está impedindo a fabricação de modelos novos são apenas pequenos exemplos dos problemas que podem ocorrer daqui para frente.

Alguns dos sinais emitidos por essas mudanças são bastante positivos. As metas do milênio da ONU, estabelecidas no início deste século, estão mais bem próximas do desejável do que quando foram formuladas. Com exceções, políticos dos países responsáveis por grandes volumes de emissões de gases do efeito estufa não questionam mais os estudos sobre a sua origem nem fogem das providências necessárias para sua redução.

Programas nesse sentido avançaram; organismos internacionais encontram obstáculos, mas prosseguem. O custo da energia de fontes renováveis vem caindo; o emprego da energia solar cresceu mais do que 15 vezes nos últimos dez anos e o da eólica, próximo de quatro (no Brasil há uma inversão, a eólica avança mais depressa).

Por outro lado, com relação às questões que afetam a sociedade, os impactos são extremamente preocupantes. O desnível de renda entre camadas da população de vários países aumenta cada vez mais e o acesso às escolas já está seriamente comprometido. A educação, ingrediente essencial para o progresso social e a integração de pessoas em atividades mais dignas, sofreu enormes retrocessos com a pandemia do coronavírus. Mesmo os empregos que surgirão à medida que os diferentes setores da economia retomarem suas atividades exigirão conhecimentos e aptidões dificilmente encontrados nas pessoas que ficaram desempregadas.

 

Onde entra a química verde aqui?

Cabe à comunidade química assegurar um futuro no qual os materiais e os produtos químicos que formam a base de nossa economia sejam saudáveis e não tóxicos, obtidos de fontes renováveis e não sujeitos ao esgotamento, degradáveis e não persistentes. A revista Science, um dos principais periódicos da comunidade científica mundial, aborda esse desafio na sua edição de 24 de janeiro de 2020, dedicada à ‘Química para a Terra de amanhã’ (figura 2). Segundo os principais pesquisadores da área, a pesquisa e inovação de ponta, baseadas em química verde, já estão reinventando tudo: plásticos, fármacos, agroquímicos, eletrônicos, sistemas de geração e armazenamento de energia etc.

Figura 2. Capa da edição de 24 de janeiro de 2020 da revista Science, que trouxe artigos sobre como construir, a partir da química, um futuro sustentável para o planeta

No final de 2020, as lideranças das sociedades norte-americana e alemã de Química (GDCh) promoveram um evento, no qual renovaram, por mais cinco anos, o apoio à comunidade química. O encontro contou com palestras e discussões sobre as contribuições da química para a sociedade; em particular, aquelas relacionadas aos Objetivos de Desenvolvimento Sustentável da ONU, adotados por todos os estados-membros em 2015 e que fazem parte da chamada universal para, até 2030, acabar com a pobreza, proteger o planeta e assegurar que todas as pessoas possam desfrutar da paz e prosperidade.

No Brasil, a iniciativa pioneira de comercializar insumos petroquímicos obtidos a partir de fontes renováveis coube a uma empresa nacional, que agora cuida de sua reciclagem e vem investindo em versões biodegradáveis de seus produtos finais. Outras empresas inovadoras se estabeleceram no país por causa do acesso a matérias-primas ou oportunidades de parcerias com empresas locais que apresentam vantagens comparativas.

Em 2021, foi proposta a formação de uma Rede Brasileira de Bioeconomia, que busca servir de ponto de encontro de todos os envolvidos na área de bioeconomia, proporcionando um espaço para exposição de empresas, startups, universidades, institutos de pesquisa, disseminação de conhecimento e realização de negócios.

Tais ações implicam um planejamento de longo prazo, no qual caberia à EBQV acompanhar o estado da arte, atualizar as grades curriculares e identificar as demandas tecnológicas do sistema produtivo nacional. No momento, o maior desafio consiste em formar quadros especializados. É preciso atrair jovens com talento e aptidão para uma nova concepção de processos químicos que atendam os princípios da sustentabilidade.

Por meio da educação, será possível atingir um caminho sustentável, proporcionando uma oportunidade para que segmentos menos favorecidos de nossa sociedade possam se capacitar para o papel de agentes de inovação e cidadania. A questão não é o que está acontecendo com a química verde e, sim, quando o restante da química vai ser convertido.

Peter Seidl

Escola Brasileira de Química Verde
Universidade Federal do Rio de Janeiro

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