O problema da disponibilidade da água no Brasil ganha, mais uma vez, as manchetes. Neste início de 2014, após inundações catastróficas em parte do Sudeste e na área central do país, além da inundação secular que atingiu por alguns meses Rondônia, Acre e partes de Mato Grosso, a seca se abateu não no Nordeste, como historicamente acontece, mas no próprio Sudeste. A escassez de água no sistema de represas da Cantareira, em São Paulo, criou cenários alarmantes para o abastecimento da capital e de sua região metropolitana.
Para acalmar a população, autoridades dizem, reiteradas vezes, que não haverá racionamento de água na região de São Paulo e que grande parte do problema se deve à falta de chuvas e ao desperdício. No extremo oposto do país, a inundação que levou ao transbordamento do rio Madeira foi atribuída a uma intensidade excepcional de chuvas na cordilheira dos Andes, eximindo de qualquer responsabilidade as companhias elétricas gestoras das represas de Jirau e Santo Antônio. Foi esquecido que, logo no início da enchente, os administradores das duas represas culparam um ao outro pela falta de previsão dos efeitos de chuvas pesadas.
O governo, naturalmente, assumiu o compromisso de financiar ajuda imediata para as vítimas. Essa ajuda é obviamente necessária, mas não trará soluções se não vier acoplada a ações para solucionar o problema em médio e longo prazos. O conhecimento científico acumulado e a tecnologia existente já não permitem mais culpar a natureza pelas catástrofes anunciadas. A raiz do problema é mais profunda.
Nas várias leis federais que regulam o uso da água no Brasil, é encontrado com frequência o termo técnico ‘recursos hídricos’, mas este não é definido. Quais são os recursos hídricos brasileiros? Na discussão sobre o novo Código Florestal, entre 2011 e 2012, não foi considerado o impacto de várias alterações relacionadas à questão dos recursos hídricos. Descartou-se, por exemplo, o argumento de que as chamadas áreas úmidas atuam como esponjas, estocando água em excesso em períodos de chuva e liberando essa água durante épocas secas. Os alertas dos cientistas de que a nova versão dessa lei reduziria dramaticamente a proteção das áreas úmidas não foram considerados, alegando-se que não existia uma definição brasileira do termo.
Diante das pressões do agronegócio, foi modificado, no novo Código Florestal, o marco regulatório para a proteção das margens dos rios. Esse marco passou a ser o ‘nível regular’ da água (ou seja, a calha normal do rio), enquanto no Código anterior era a média dos níveis máximos das cheias. A história mostra que as catástrofes econômicas e sociais ocorrem sempre durante as secas e inundações extremas, e que enchentes grandes atingem com maior frequência a população mais pobre, que ocupa as áreas de risco, mais próximas dos rios, por falta de outras opções.
Inundações e secas catastróficas vêm sendo aceitas pela maioria dos políticos como forças superiores, fora de seu controle. Na realidade, a legislação brasileira que regula o manejo e a proteção dos recursos hídricos é inadequada, permitindo variadas interpretações, conforme o interesse de grupos econômicos.
O novo Código Florestal, apoiado pelo agronegócio, permite a destruição acelerada das áreas úmidas, fundamentais no ciclo hidrológico, e abre caminho para a colonização, pela população de baixa renda, de grande extensão de áreas sujeitas ao risco de inundações catastróficas. Essa população cobra do governo indenizações, quando vitimada, o que significa dizer que os lucros dos grupos interessados na ocupação das terras das áreas úmidas vão para a iniciativa privada, mas os prejuízos recaem sobre os cofres públicos, ou seja, sobre o conjunto dos contribuintes.
Há saída?
Afinal, qual é a saída para o problema? Em primeiro lugar, é urgente que o Brasil atualize sua legislação sobre o manejo de seus recursos hídricos, incluindo no texto legal as áreas úmidas como parte importantíssima do ciclo hidrológico. Para isso, é necessária uma definição oficial, cientificamente correta, do termo ‘recursos hídricos’.
Tal definição já foi feita por um grupo de especialistas e encaminhada, no final de 2013, ao Ministério do Meio Ambiente (MMA): “Recursos hídricos abrangem a água de chuva e todos os corpos de água, naturais e artificiais, superficiais e subterrâneos, continentais, costeiros e marinhos, de água doce, salobra e salgada, parados (lagos e águas represadas) e correntes (rios – intermitentes, efêmeros ou perenes – e seus afluentes, hidrovias e canais artificiais), e todos os tipos de áreas úmidas, permanentes e temporárias”. O estudo foi publicado em Aquatic Conservation, v. 24, p. 5, 2014.
Além disso, é preciso definir e delinear as áreas úmidas do país. No mesmo trabalho, o grupo de especialistas também propõe uma definição para a extensão das áreas úmidas: “A extensão de uma área úmida é determinada pelo limite da inundação rasa ou do encharcamento permanente ou periódico, ou, no caso de áreas sujeitas aos pulsos de inundação, pelo limite da influência das inundações médias máximas, incluindo-se aí, se existentes, áreas permanentemente secas em seu interior, hábitats vitais para a manutenção da integridade funcional e da biodiversidade das mesmas. Os limites externos são indicados pela ausência de solo hidromórfico e/ou pela ausência permanente ou periódica de hidrófitas e/ou de espécies lenhosas adaptadas a solos periodicamente encharcados”. Falta aplicar essas definições na legislação nacional.
O Brasil necessita ainda classificar suas áreas úmidas, trabalho parcialmente feito ou em andamento. Sabe-se que cerca de 20% do território brasileiro corresponde a áreas úmidas, diferentemente de dados anteriores que indicavam apenas entre 4% e 7%. Esse conhecimento deve ser introduzido nas leis.
Falta realizar um levantamento detalhado dos macro-hábitats das áreas úmidas brasileiras, incluindo sua descrição ecológica. Essa tarefa é difícil e precisa do apoio do governo, pois a maioria das áreas úmidas é de pequeno porte e seu levantamento é demorado e caro, mas vital.
Finalmente, é necessária uma legislação específica para o manejo sustentável e a proteção das áreas úmidas. Essa tarefa é multidisciplinar e exige a liderança de um ministério – por exemplo, o do Meio Ambiente, com seu braço prático, a Agência Nacional de Águas. Os cientistas já têm dados à disposição e estão plenamente interessados em cooperar nessa tarefa importantíssima.
Enquanto esses problemas não forem resolvidos, continuaremos a sofrer secas e inundações dramáticas, além da falta de água potável, com danos econômicos e sociais crescentes. Quadro incompatível com o país que detém o maior sistema fluvial do mundo!
Wolfgang J. Junk
Instituto Nacional de Ciência e Tecnologia em Áreas Úmidas (INAU)
Universidade Federal de Mato Grosso
Maria Teresa Fernandez Piedade
Instituto Nacional de Pesquisas da Amazônia (INPA)
Ennio Candotti
Museu da Amazônia
Texto originalmente publicado na CH 315 (junho de 2014). Clique aqui para acessar uma versão resumida da revista.