Crises  políticas, de modo inapelável, incidem sobre o tempo imediato.  É essa mesma a natureza própria do seu acontecer.  É certo que possuem uma história e que, por mais inesperadas, um conjunto de fatores, ao longo do tempo, as propicia. O filósofo político francês Alexis de Tocqueville (1805-1859), em uma de suas obras primas – Lembranças de 1848 – dizia que o acaso cumpre um enorme papel nos assuntos humanos, sendo ele, no entanto, preparado por vasto conjunto de circunstâncias propiciatórias. Mas, isso só sabemos a posteriori, ao fazer retroceder conjecturas e hipóteses, e buscando calçá-las com registros minimamente fidedignos. Tal é o procedimento básico da história, conhecimento que exige antes de tudo imaginação, já que nenhuma crise é portadora inequívoca de seus significados.

Da mesma forma que suas origens podem ser remetidas ao passado imemorial, as crises valem pelo que depositam no futuro: se os efeitos de uma crise são imediatos, eles constituem as circunstâncias originárias de eventos e roteiros históricos futuros.

A crise política que assola o país tem produzido efeitos imediatos perturbadores.  A ânsia por um desfecho opera como obsessão nas mentes dos observadores. Ainda que tal apego ao imediato tenha lá suas razões, é fundamental incluir em nossas especulações possíveis efeitos de médio e longo prazo. Um desses efeitos possíveis é o da redução do peso e do apelo de uma agenda política e social de esquerda, como alternativa civilizatória ao país, tal como indica o destaque hoje alcançado por propostas e valores abertamente regressivos. Que boçais advoguem o retorno à ditadura e lamentem que “não se tenha matado todos em 1964” não significa que isso deva ser levado a sério, como condição para o entendimento do que se passa e do que pode vir a ocorrer.

Coisa mais séria é o tema da redução da maioridade penal, a definição homofóbica do núcleo familiar, a isenção fiscal dos mais ricos, a cultura do rearmamento, o eufemismo do ‘ajuste fiscal’ como forma de vida e, enfim, a perspectiva da erosão no núcleo civilizatório da Constituição de 1988. Este talvez seja o legado maior da possível dissolução – ou retração drástica – do movimento político, cultural e social que tem estado presente de modo central na vida brasileira, desde o fim do regime de 1964.

O cenário é grave. Não se trata simplesmente de lamentar por antecipação o que poderá resultar das próximas temporadas eleitorais de 2016 e 2018. Mesmo porque as surpresas da adversidade são muitas. Mais importante parece-me ser indagar o seguinte:  pode o Brasil – com a complexidade, os dramas sociais e a inserção no mundo que detém – dispensar a presença de uma alternativa política forte de centro-esquerda, dotada tanto da capacidade de afetar o cenário legislativo quanto da de governar?

Nenhum dos países que, no século 20, se afirmaram como democracias com alguma solidez dispensou a presença de um ‘efeito esquerda’. A presença de partidos e movimentos de extração comunista, socialista e socialdemocrática, nos países democráticos, foi fundamental para a fixação de uma agenda de direitos sociais, que acabou por se entranhar nas malhas da vida social.  Ao contrário do chamado ‘socialismo real’, caracterizado por regimes de partido único e liberticidas, nos países ocidentais o fator socialismo foi integrado à dinâmica da competição eleitoral. Mesmo fora dos governos, exerceu pressão legislativa para afirmar direitos coletivos e para minimizar danos de políticas recessivas.

A não ser para reacionários empedernidos, é essencial reconhecer o ‘efeito esquerda’ como um dos elementos constituintes da democracia contemporânea. Há que distinguir, portanto, entre os impasses passes fixados na trajetória de uma força de esquerda na conjuntura presente e o tema maior a enfrentar, com impactos de longo prazo: pode uma sociedade democrática e complexa dispensar a presença de um ‘efeito esquerda’?

 

Renato Lessa
Departamento de Ciência Política |Universidade Federal Fluminense
Instituto de Ciências Sociais | Universidade de Lisboa

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