Racionalidade e individualidade no mundo administrado

Max Horkheimer (1895-1973), filósofo judeu alemão e simpatizante do marxismo, teve seu pensamento marcado pelo conturbado cenário social, econômico e político da primeira metade do século 20. Suas ideias começaram a florescer no apogeu da República de Weimar (1919-1933) e nos primeiros anos da ascensão do nacional-socialismo na Alemanha. A chegada de Adolf Hitler (1889-1945) ao poder, contudo, foi decisiva para a opção de exilar-se nos Estados Unidos, a partir de 1934, ante a temeridade de permanecer em Frankfurt. Nessa época, a perseguição aberta aos judeus nem bem havia começado.

Nos Estados Unidos, Horkheimer se vinculou à Universidade Colúmbia, em Nova York, onde ministrou seminários eletivos. Já nos seus primeiros anos de exílio teve contato com a democracia e a cultura de massas, algo bem diverso da experiência do terrorismo fascista na Alemanha, mas que veio somar-se a ela.

Em 1941, nas regiões conquistadas pelos alemães, começou o cerco contra os judeus. Eles foram obrigados a usar a estrela de Davi em suas vestes e proibidos de emigrar. No mesmo ano, tem lugar o ataque à União Soviética, com o que se quebrou o pacto de não agressão celebrado dois anos antes entre alemães e russos.

À proporção que as tropas nacional-socialistas avançavam, punha-se em prática o extermínio em massa nos territórios conquistados.

Os horrores da guerra, o extermínio dos judeus, a desconfiança em relação à democracia e à cultura de massas formam o pano de fundo para a inquietante pergunta que Horkheimer, em parceria com Theodor Adorno (19031969), propusera no livro Dialética do esclarecimento. Por que a humanidade, em vez de entrar em um estágio verdadeiramente humano, parece afundar-se em uma nova espécie de barbárie? Por mais instigante que possa ser a tentativa de se buscar a resposta àquela questão, o livro redigido a quatro mãos traz mais desapontamento do que satisfação para o leitor. A linguagem hermética, os intermináveis parágrafos, as reiteradas alegorias acabaram por confinar a obra a um público restrito, disposto a decifrar suas enigmáticas considerações.

Em contrapartida, Eclipse da razão tem a vantagem de proporcionar um caminho menos árduo para penetrar no âmago da crítica do filósofo à modernidade, ainda que também não seja obra fácil para o leitor iniciante. Ela pressupõe um conhecimento mínimo de história da filosofia. Mas o melhor vem agora! A resposta àquela inquietação expressa em Dialética do esclarecimento está no título desta segunda obra: as recentes barbáries acontecidas na história são tributadas ao que o autor denomina eclipse da razão, ou seja, ao modo como a razão conduziu um tipo específico de progresso.

Não se trata de uma explicação histórica ou sociológica dessas barbáries. Horkheimer é filósofo e apresenta uma resposta filosófica. Ele mostra que hoje prevalece uma concepção minguada de racionalidade, contraposta àquela construída no Século das Luzes, em que a razão era vista como uma instância para a determinação de princípios morais. Essa concepção foi ofuscada pela tendência hodierna a pensá-la como instrumento a serviço exclusivo da dominação da natureza. Da dominação da natureza à dominação de homens sobre homens foi um passo. Esse segundo tipo de dominação assumiu diferentes formas ao longo da história: sangrentas, como as guerras; econômicas, como a dependência de grandes grupos industriais; políticas, como a democracia de massas; e sutis, em que se manipulam as consciências das pessoas – tal como acontece na indústria cultural.

No início do livro, o autor passa em revista a história da filosofia para mostrar o conteúdo outrora pressuposto no conceito de razão. Ele sustenta que a razão tem dois aspectos: o subjetivo – uma “faculdade de classificação, inferência e dedução”, comprometida com a escolha dos meios mais adequados aos fins propostos e relacionada tanto ao pragmatismo da vida quanto ao desenvolvimento científico; e o objetivo – uma “força” que rege as “relações entre seres humanos em instituições sociais e na natureza”.

A dimensão objetiva da racionalidade está presente nas grandes religiões e nos sistemas filosóficos de Platão a Hegel. Ela se faz presente também nos juízos estéticos e éticos, que determinam as metas supremas da vida. O lado subjetivo era a “expressão parcial de uma racionalidade universal” objetiva. Essa significação se perdeu, pois o aspecto subjetivo se impôs sobre o objetivo, de modo que hoje o racional equivale ao prático.

A denúncia da crise da razão é completada pela análise da situação do indivíduo na sociedade hodierna. Novamente, Horkheimer recorre à história da filosofia para mostrar o percurso desde seu surgimento na sociedade helênica, o apogeu com a ascensão burguesa e o declínio nos dias atuais. A noção de indivíduo encontra sua formulação mais bem acabada na filosofia moderna, sobretudo no idealismo alemão. Trata-se do indivíduo autônomo, aquele que é capaz de agir e justificar racionalmente suas ações. Se no plano conceitual essa definição está pronta, no plano material faltam as condições para sua efetiva realização. Só alguns poucos burgueses poderiam realmente ser considerados indivíduos na pura acepção da palavra. No capitalismo liberal, esses indivíduos dispunham de uma base econômica suficientemente forte, que lhes garantia autonomia de ação e possibilidade de planejamento do futuro.

O que chama a atenção é o paradoxo de que hoje seria possível a realização do indivíduo, pois as condições materiais são plenamente favoráveis a isso. No entanto, nossa etapa corresponde ao seu declínio. No capitalismo avançado ou mundo administrado, que é a maneira como o filósofo designa a época atual, essa base econômica individual se enfraqueceu. Do ponto de vista social, prevalece um tipo que o autor denomina submisso ou servil, isto é, incapaz de opor resistência ao mundo, adaptando-se passivamente a ele.

Eclipse da razão denuncia as tendências destrutivas do mundo administrado, que solapam a razão e o indivíduo

Assistimos hoje ao surgimento da sociedade de massa e à crescente indiferença de uns em relação aos outros, sobretudo nas grandes metrópoles. No lugar do típico cidadão burguês, temos hoje executivos e empregados, que desempenham suas respectivas funções. E cada um deles é um elemento fungível, ou seja, que se desgasta e é substituído por outro. Essa sociedade de massa celebra muito mais o culto ao corpo e às futilidades dos figurões da indústria cultural do que promove verdadeiramente os valores do indivíduo.

Eclipse da razão denuncia as tendências destrutivas do mundo administrado, que solapam a razão e o indivíduo. Não se trata de um louvor nostálgico do passado nem de uma condenação tecnofóbica da ciência. Com sua crítica, Horkheimer não quer negar o progresso científico e tecnológico, que é histórico e necessário, mas assinalar o custo que se pagou por ele, sobretudo o esquecimento das diretrizes morais encrustadas na noção moderna de razão, que sustentaram a autonomia do indivíduo.

Ele quer também recordar que as realizações técnico-científicas deveriam estar orientadas para a realização da liberdade humana e justiça e não para os imperativos do sistema. Mesmo tendo sido escrita em 1947, essa obra é de uma atualidade permanente e sua retradução para o português, agora melhorada, enriquece o acervo dos clássicos da filosofia do século 20 disponíveis em língua nacional.

 

Eclipse da razão
Max Horkheimer
São Paulo, Unesp, 207 p., R$ 48

 

Rafael Cordeiro Silva
Instituto de Filosofia,
Universidade Federal de Uberlândia

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