No nono filme da série X-Men (Marvel Comics) aprendemos sobre a [nova] origem de personagens recorrentes, como Wolverine e Ciclope, e do próprio grupo de mutantes. Nele, somos apresentados a En Sabah Nur, o primeiro mutante, também conhecido como “O primeiro”, “A luz da manhã”, ou “Apocalipse”.

No filme, En Sabah Nur está adormecido há milhares de anos e, em 1983, é despertado acidentalmente. Ao se deparar com um mundo estranho e destruído, resolve que os humanos não o merecem. Tem início então sua saga para destruir o planeta, angariando outros mutantes para ajudá­lo.

O subtítulo do filme, Somente os fortes sobreviverão (only the strong will survive), vem das origens de En Sabah Nur. Ele teria sido criado pelo povo das tormentas de areia que vivia sob a máxima de que apenas os mais adaptados sobrevivem (survival of the fittest). Sabah Nur estende esse conceito para justificar a aniquilação dos humanos: eles são fracos; portanto, não merecem viver.

A rigor, os mutantes da Marvel só poderiam ser considerados ‘adaptados’ se deixassem muitos descendentes, ou mais descendentes do que os não mutantes

O universo Marvel, as duas frases aparecem como sinônimos, mas, no entanto, do ponto de vista da biologia evolutiva, certamente não o são. A expressão survival of the fittest foi cunhada pelo filósofo inglês Herbert Spencer (1820­1903), ao ler o livro A origem das espécies, do também inglês Charles Darwin (18091882). Em seu livro seminal, Darwin descreve o conceito de seleção natural para explicar como a evolução acontece. Segundo esse conceito, os indivíduos que apresentam variações genéticas vantajosas terão mais chances de deixar descendentes para a próxima geração. Portanto fit é mais bem traduzido como ‘adaptado’, o que não quer dizer necessariamente mais forte. Adaptado pode ter mais a ver, por exemplo, com a coloração do indivíduo, que o mantém discreto em muitas situações, ou a sua capacidade de se adaptar a diferentes temperaturas.

Vale lembrar que o ambiente em que vivemos sofre modificações (naturais e também produzidas pela ação humana) e o organismo mais adaptado hoje pode não ser o mais adaptado no futuro. Portanto, a rigor, os mutantes da Marvel só poderiam ser considerados ‘adaptados’ se deixassem muitos descendentes, ou mais descendentes do que os não mutantes. Em tempo, nos quadrinhos, Apocalipse possui extensa prole, conhecida como Clã Akkaba.

Genes e poderes sobre-humanos

A série X­-Men é repleta de referências à biologia evolutiva. A começar pela explicação dos poderes sobre-­humanos conferidos aos seus personagens: mutações no gene X. A ideia é que essas mutações atribuiriam poderes, como a capacidade de manipular campos magnéticos, ler mentes, produzir fogo com as mãos, se teletransportar etc.

A noção de que um único gene seria capaz de controlar ‘funções’ tão diversas está bem longe da realidade que conhecemos. Em geral, ações e funções complexas requerem envolvimento de múltiplos genes. Vamos tomar como exemplo a inteligência humana. A inteligência é difícil até para se definir, e foi preciso que 52 pesquisadores se juntassem para escrever que a melhor definição para inteligência seria “uma capacidade bem geral que, entre outras coisas, envolve a habilidade de raciocinar, planejar, resolver problemas, pensar abstratamente, compreender ideias complexas, aprender rápido e aprender pela experiência […].” No entanto, até hoje não sabemos ao certo quantos e quais genes estão relacionados à inteligência, embora saibamos que de 30% a 80% da nossa inteligência é herdável. Por outro lado, sabe-­se que mais de 300 genes, quando sofrem mutação, causam retardo mental em humanos. Assim, poderíamos especular que pelo menos uma centena de genes é importante para determinar uma função complexa como a inteligência. Manipular as mentes pode não parecer tão complexo, e, apesar de improvável, se fosse possível certamente envolveria mais de um gene.


(foto: divulgação)

En Sabar Nur, que se autointitulava “deus” no filme, tem inteligência mais que sobre-­humana: é um gênio ‘científico’ nas mais diversas áreas e possui conhecimentos ainda não alcançados pelo ser humano. Mas, como vimos, não há um gene único que possa afetar a inteligência dessa forma.

Outro aspecto sobre ele é o da imortalidade. Uma das principais características biológicas do envelhecimento é o encurtamento dos telômeros – sequências repetitivas de DNA localizadas nas extremidades dos cromossomos, que protegem o material genético e facilitam a multiplicação das células. Assim como os cadarços velhos de nossos tênis perdem suas agulhetas, com o tempo, nossos cromossomos perdem seus telômeros.

A tarefa de evitar o encurtamento dos telômeros é realizada por uma enzima chamada telomerase. A telomerase adiciona sequências de DNA nas extremidades dos cromossomos prevenindo a erosão telomérica e mantendo a capacidade das células de se multiplicarem. Em laboratório, é possível reverter em camundongos os sinais do envelhecimento por meio da manutenção da integridade dos telômeros. Podemos especular que En Sabar Nur mantém seus telômeros íntegros ad eternum, o que lhe permite ser imortal.

Pelo que foi descrito nas revistas, ele teria nascido há milhares de anos e vivido por pelo menos mil anos antes de adormecer. Então, seria dotado de uma memória prodigiosa, que, é claro, também seria um aspecto da sua inteligência. Há pessoas com memória bem acima da média, dentro de um grupo conhecido como savants (sábios). O exemplo mais no tório no cinema é o personagem Raymond Babbitt vivido por Dustin Hoffman no filme Rain Man. Esse personagem foi baseado em um homem capaz de memorizar mais de 6 mil livros e que tinha conhecimento enciclopédico de geografia, música, literatura, esportes etc. Claro que todos também lembram das deficiências que ele também apresentava: inabilidade social, dificuldade de comunicação, entre outros sintomas, no caso, característicos de autismo.

Há muitos exemplos de pessoas que nascem com habilidades extraordinárias acompanhadas de problemas cognitivos graves. Na maioria dos casos, portanto, trata-­se de distúrbios do desenvolvimento cerebral, cuja etiologia ainda não é plenamente conhecida. Mas há também pessoas que adquirem características savants em algum outro momento da vida, decorrente de um trauma ou doença, e até de um tipo de demência. De qualquer forma, até onde sabemos, tais habilidades extraordinárias viriam acompanhadas de deficiências em outras áreas.

Nós, humanos, temos a capacidade limitada de regenerar tecidos e órgãos, nada comparado a uma lagartixa, muito menos ao Wolverine. O processo de regeneração depende de células-­tronco capazes de transformar os tecidos lesados ou perdidos, por exemplo, num acidente.

Há 10 anos, o cientista japonês Shinya Yamanaka criou, a partir da pele de voluntários adultos, células reprogramadas que se comportam como células embrionárias e podem regenerar tecidos em laboratório. Para isso, induziu em fibroblastos (células) de pele a expressão de quatro genes (entre os 25 mil que compõem nosso genoma). Essas células ainda não foram descobertas naturalmente em nenhum mamífero, muito menos no ser humano, mas talvez Wolverine as possua, o que explicaria sua capacidade surpreendente de regeneração.

Marília Zaluar P. Guimarães
Stevens Rehen

Instituto de Ciências Biomédicas, Universidade Federal do Rio de Janeiro e
Instituto D’Or de Pesquisa e Ensino

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