O Rio de Janeiro foi palco de capítulos marcantes da história da escravidão no Brasil. Por décadas foram desembarcados, comercializados e enterrados em sua área portuária milhares de escravos vindos da África, na maior das diásporas humanas conhecidas.
No contexto brasileiro, o Rio de Janeiro foi a grande capital da empresa escravagista, já que seus portos – segundo historiadores como o norte-americano Herbert S. Klein e o brasileiro Manolo Florentino – receberam cerca de metade dos africanos trazidos para a América portuguesa. Por isso, a cidade tem grande importância nos estudos sobre o tráfico negreiro.
Em 1996, um achado acidental, durante a reforma de uma casa na Gamboa, confirmou que sob a malha urbana estava situado um dos mais importantes cemitérios de escravos conhecidos no Brasil. A localização do Cemitério dos Pretos Novos (criado em 1769 e extinto em 1830), um sítio histórico e arqueológico único na América, havia sido perdida devido ao intenso crescimento urbano ocorrido na área do Valongo (que abrange os atuais bairros de Gamboa e Saúde) após seu fechamento oficial em 1830.
Esse cemitério seria utilizado majoritariamente para abrigar os corpos de africanos que morriam antes de serem vendidos (daí a expressão ‘pretos novos’), o que constitui uma memória importantíssima e, ao mesmo tempo, um terrível testemunho desse processo histórico. Reconhecido pela memória local como um dos marcos da história da escravidão, o cemitério é hoje objeto de interesse de instituições de patrimônio histórico, de cientistas e sobretudo da comunidade da Gamboa.
O Cemitério dos Pretos Novos foi criado por Luís Melo Silva Mascarenhas (1729-1790), o marquês do Lavradio, então vice-rei do Brasil, por conta da transferência do porto de desembarque dos escravos do cais da praça XV, no centro da cidade, para o Valongo, na época fora dos limites urbanos.
Para o novo cemitério foi demarcada uma quadra com lados de 50 braças (tamanho aproximado de um campo oficial de futebol), terreno apontado em mapas e documentos de época. Segundo registros históricos, podia ser avistado dos trapiches e armazéns do mercado, de onde os escravizados teriam continuamente a visão aterradora do ir e vir dos corpos. Os cadáveres por vezes permaneciam dias insepultos, até que alguém os cobrisse precariamente com alguma terra.
Situado em área aberta e arenosa da praia da Gamboa, próximo ao morro da Saúde, esse cemitério passou a receber os enterros feitos anteriormente no largo de Santa Rita, em frente à igreja de mesmo nome, hoje no Centro da cidade do Rio de Janeiro. O historiador Júlio César Pereira, que pesquisou os arquivos da igreja, revelou que, nos últimos seis anos de uso do cemitério do Valongo, foi superada a média de mil enterros por ano.
O estudo de ossos e dentes ainda presentes na área desse cemitério, que teria recebido dezenas de milhares de corpos, segundo estimativas de alguns autores, é muito importante para aprofundar o conhecimento sobre os africanos escravizados e trazidos ao Brasil colonial.
Embora o cemitério nunca tenha sido objeto de escavações sistemáticas, o salvamento de 1996 proporcionou uma pequena coleção de dentes e ossos humanos dispersos, estudados inicialmente pela bioarqueóloga Lilia Cheuiche Machado (1938-2005), do Instituto de Arqueologia Brasileira, onde está hoje o acervo. Foram também recuperadas contas de vidro, louça e outros materiais relacionados ao contexto urbano do Rio de Janeiro e à escravidão.
A pesquisadora confirmou fatos descritos na literatura histórica, como a queima dos corpos e seu enterro em valas comuns, e verificou a predominância de jovens e de indivíduos do sexo masculino, resultado consistente com a população preferencial para o tráfico. Infelizmente, o estudo do material ficou inconcluso, devido ao falecimento de Lilia Machado.
Recentemente, um grupo de pesquisadores que já acumulam estudos sobre populações do passado, inclusive sobre os temas de escravidão e afrodescendência na América, retomou a pesquisa dos remanescentes humanos recuperados no Cemitério dos Pretos Novos. Os novos projetos multidisciplinares, apoiados pela Fundação de Amparo à Pesquisa do Rio de Janeiro (Faperj) e pelo Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq), visam caracterizar melhor as origens dos indivíduos e descrevê-los em aspectos antes não estudados.
Sheila Mendonça de Souza
Departamento de Endemias Samuel Pessoa
Escola Nacional de Saúde Pública Sergio Arouca
Fundação Oswaldo Cruz
Della Collins Cook
Departamento de Antropologia
Universidade de Indiana (Estados Unidos)
Murilo Quintans Bastos
Programa de Pós-graduação
Laboratório de Geocronologia
Departamento de Geoquímica e Recursos Minerais
Universidade de Brasília
Ricardo Ventura Santos
Departamento de Antropologia
Museu Nacional
Universidade Federal do Rio de Janeiro e
Departamento de Endemias Samuel Pessoa
Escola Nacional de Saúde Pública Sergio Arouca
Fundação Oswaldo Cruz