Uma etapa decisiva para a nossa visão de mundo ocorreu em 1859. Nesse ano, o naturalista inglês Charles Darwin (1809-1882) publicou A origem das espécies. Anteriormente, acreditava-se que o mundo teria sido criado por uma entidade divina em uma versão estática e, portanto, as condições atuais seriam iguais às existentes no início. Essa criação teria acontecido em apenas sete dias e em época relativamente recente.
Opiniões divergentes eram consideradas heresia, e poderiam levar seu autor à prisão, ao julgamento pelos tribunais da Inquisição e, em muitos casos, à morte, queimado em uma fogueira diante de uma multidão de fiéis.
Isso mudou com a publicação de A origem das espécies. Desde então, as ideias de Darwin foram submetidas a cuidadoso exame e, com o surgimento de novas técnicas de análise do material genético, revistas e ampliadas.
Apesar das revisões, o eixo principal da teoria darwiniana permanece intacto: o fator principal que determina a evolução orgânica é a seleção natural. Nesse processo, a variação natural dos indivíduos, devido a erros aleatórios na duplicação do material genético (o ácido desoxirribonucleico, ou DNA) durante a reprodução, está sujeita a uma seleção, porque as alterações influem na viabilidade ou na fertilidade de cada indivíduo e isso favorece (ou não) a transmissão de seus genes para a próxima geração.
O casamento feliz entre a evolução e a genética (chamado de ‘síntese moderna’) ocorreu a partir da década de 1930, por meio do trabalho de cientistas de grande importância. Entre eles, pode-se destacar, por sua relação com o Brasil, onde viveu por muitos anos, o geneticista russo, naturalizado norte-americano, Theodosius Dobzhansky (1900-1975).
A ‘síntese moderna’ e outros avanços mais recentes – entre eles a elucidação da estrutura do material genético, as técnicas de manipulação do DNA e os desenvolvimentos da bioinformática e da nanotecnologia – podem ser caracterizados como verdadeiras revoluções científicas.
Apenas mais uma espécie?
A linhagem evolutiva que originou o Homo sapiens começou a se diferenciar, há 7 milhões de anos, de outra que agora é representada por chimpanzés e gorilas. O que nos diferencia de nosso parente mais próximo, o chimpanzé?
Embora os genomas dessas duas espécies sejam cerca de 98% idênticos, ninguém confunde um humano com um chimpanzé, e talvez as diferenças mais marcantes sejam: (a) o tamanho e a estrutura do cérebro, com capacidades médias cranianas de 1.350 cm3 e 450 cm3, respectivamente; (b) o bipedalismo, muito mais desenvolvido – e permanente – em humanos; (c) a linguagem, ou seja, a combinação de sons básicos (fonemas) para formar palavras e de palavras para formar sentenças, o que não ocorre em qualquer sistema de comunicação de chimpanzés; e (d) a cultura, ou seja, a elaboração de artefatos materiais e conceitos abstratos, quase exclusiva do H. sapiens.
Então, podemos ser distinguidos de outras espécies por meio da cultura. Mas o que é cultura? Dizem que há tantas definições de cultura quanto antropólogos, cada um salientando aspectos específicos do processo (ver ‘Chimpanzés têm cultura?’, na CH 290, disponível, para assinantes, no acervo digital).
Pode-se, em todo o caso, caracterizá-la como o complexo de crenças, valores, comportamentos e tradições associado a uma população – para tornar o conceito mais acessível a comparações, inclusive entre espécies, pode-se expressá-lo como a informação capaz de afetar o comportamento individual adquirido por meio do ensino, da imitação e de outras formas de aprendizagem social. O termo informação inclui conhecimento, crenças, valores e habilidades, que se expressam tanto no comportamento quanto em artefatos.
As interpretações sobre as relações entre biologia e cultura têm sofrido uma evolução curiosa ao longo dos tempos. De início, supunha-se que fatores biológicos determinariam de maneira estrita a capacidade de adquirir e transmitir traços culturais. Mais tarde, em especial devido aos trabalhos do antropólogo alemão, naturalizado norte-americano, Franz Boas (1858-1942), passou-se a questionar se a biologia teria qualquer influência nesse processo. Hoje, acredita-se em uma interação entre biologia e cultura, com influências mútuas.
O que ninguém questiona é que as taxas de mudança nos processos biológicos e nos culturais são marcadamente diferentes. O ritmo da evolução cultural é muito mais acelerado. Dois fatores explicam isso: a transmissão de uma novidade biológica (mutação) só pode ser feita por seu portador a descendentes diretos, enquanto a novidade cultural pode se espalhar rapidamente por informação entre pessoas não relacionadas, por aprendizagem professor-aluno e pela imitação de pessoas célebres, além da difusão por imprensa, rádio, televisão e internet.
Para dar uma ideia da rapidez da evolução cultural, basta lembrar que apenas 12 mil anos separam a tecnologia do arco e flecha da que produziu as estações espaciais!
Hoje, grande número de pesquisadores investiga de que maneira esses dois fatores (biologia e cultura) podem influenciar um ao outro. Há toda uma área de estudos relacionada a modelos matemáticos de coevolução gene-cultura, envolvendo, por exemplo, a cooperação dentro de e entre comunidades, os tabus de incesto, bem como o comportamento sexual e crenças de paternidade.
Francisco M. Salzano
Departamento de Genética
Universidade Federal do Rio Grande do Sul