A banda brasileira Paralamas do Sucesso, em sua bela canção ‘Tendo a Lua’, argumenta que o céu de Ícaro tem mais poesia que o de Galileu. Com duas filhas adolescentes em casa, essa questão, por vezes, adquiria premência nos longos cafés da manhã aos sábados. Supondo a possibilidade de quantificar o quanto de poesia determinado lugar tem, será que aquela afirmação é óbvia?

Como leigo em poesia, nem tenho certeza de que o ‘poético’ possa ser bem definido, mas suponho que todos tenham um sentimento do que é poético.

O final trágico de Ícaro, sua juventude ao se jogar ao Sol, sua insolência parecem-me poéticos

O céu de Ícaro é o céu dos mitos e do trágico. Ícaro é filho de Dédalo, que, entre outras coisas, como o labirinto do Minotauro, fez asas de penas e cera para voar. Ícaro as foi testar. Desdenhou da recomendação paterna em sua ânsia juvenil de explorar o desconhecido e se aproximou em demasia do Sol. O calor derreteu a cera, e, ao final de sua provocação desmedida, ele se espatifou no mar, morrendo. O final trágico de Ícaro, sua juventude ao se jogar ao Sol, sua insolência parecem-me poéticos.

O céu do físico e astrônomo italiano Galileu Galilei (1564-1642) é aquele no qual o cientista, com telescópios e satélites, observa o espetáculo das leis da física que regem o destino igualmente trágico do universo, cujo parto de si mesmo – conjuntamente com o nascimento do espaço e do tempo – se dá em uma explosão cujos rastros conseguimos estudar por meio de seu ‘ruído’ tênue remanescente (a chamada radiação cósmica de fundo), da formação dos primeiros núcleos atômicos e da alteração da luz emitida pelas galáxias à medida que elas se afastam de nós (o desvio para o vermelho).

Com precisão cada vez maior, conseguimos mapear a história dessa explosão primordial, embora, com isso, novas questões surjam, e nossa ignorância sobre o que constitui grande parte do universo tenha aumentado com a descoberta da matéria escura e a energia escura, ambas de natureza ainda misteriosa para a ciência.

Supernova
Remanescente da supernova observada por Tycho Brahe em 1572 fotografado pelo observatório de raios-X Chandra. (foto: Nasa/CXC/SAO)

O céu de Galileu é jovem: começou a se delinear cerca de 500 anos atrás. Já em 1572, o astrônomo dinamarquês Tycho Brahe (1546-161), ao observar, na constelação de Cassiopeia, uma supernova (explosão de uma estrela massiva e moribunda), perturbava, de forma irreversível, a visão clássica do céu como um lugar imutável.

Galileu, apontando sua luneta para Júpiter e descobrindo o movimento elíptico de seus muitos satélites, abalou os fundamentos do cosmo aristotélico-ptolomaico, longamente cristalizado na Idade Média.

Aquele pequeno sistema, movimentando-se com as leis descobertas pelo astrônomo alemão Johannes Kepler (1571-1630), tornava o céu mais complexo e mais interessante do que se conhecia à época: nem todas as órbitas se davam em torno da Terra.

O céu que Galileu descortinou não é o céu plácido dos namorados. É um céu catastrófico, violento, onde as leis da física são levadas a extremos. As estrelas são palco de uma luta intensa entre a força de autogravitação, que tende a comprimi-las, e as reações nucleares em seu interior, que equilibram a gravitação.

Quando o combustível nuclear se esgota, algumas escurecem lentamente, e outras explodem em morte violenta. Dependendo da massa da estrela, a explosão que a aniquila deixa um cadáver distinto. As mais massivas terminam como buracos negros ou estrelas de nêutrons – uma colher de chá da massa destas últimas pesaria mais do que um bilhão de toneladas. As menos massivas acabam como estrelas diminutas, anãs brancas.

O céu de Galileu, com seus fenômenos catastróficos, dificilmente poderia ser sonhado por um poeta, mas poucos negariam a intensa poesia desses mundos em convulsão

Por muito tempo, buracos negros foram mera curiosidade matemática que poucos acreditavam corresponder a um sistema físico minimamente real. Hoje, os astrônomos têm certeza de que, no centro da maioria das galáxias, habita um buraco negro supermassivo, objeto que suga toda a massa e a luz em torno dele, onde o tempo literalmente para e onde um infeliz astronauta seria rasgado em pedaços.

Temos certeza de que um buraco negro habita o centro aparentemente calmo de nossa galáxia. Sabemos até inferir sua massa: 3,7 milhões a do Sol. Porém, núcleos de galáxias mais tormentosos expelem jatos gigantescos de matéria e radiação, resultados da dinâmica dos buracos negros ali instalados.

“Mas que céu pode satisfazer teu sonho de céu?”, perguntava o poeta recifense Manuel Bandeira (1886-1968). O céu de Galileu, com seus fenômenos catastróficos, de tão desmesurado, dificilmente poderia ser sonhado por um poeta. Mas poucos negariam a intensa poesia dos mundos em convulsão que o habitam.

João Torres de Mello Neto
Instituto de Física, Universidade Federal do Rio de Janeiro
joaodemelloneto@cienciahoje.org.br

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