Fenomenologia do brasileiro, curiosíssimo livro do filósofo tchecobrasileiro Vilém Flusser (1920-1991), publicado em 1998, pela Eduerj, está esgotado há vários anos e não foi reeditado. O fato de a primeira versão do texto, em alemão, ter sido escrita em 1971 já sugere uma série de vicissitudes no processo de divulgação dessa obra altamente interessante. Antes de abordar o livro em si, vale a pena relatar a história conturbada da versão alemã, lançada pela editora Bollmann Verlag em 1994.
Consta que, quando um editor de Freiburg solicitou a ele que organizasse uma coletânea de filósofos brasileiros, Flusser aproveitou e enviou o manuscrito alemão de seu livro sobre o Brasil. O editor, porém, recusou o texto e não devolveu os originais datilografados. Depois, em nova tentativa, o autor enviou suas cópias-carbono a um editor na Suíça, mas este também não quis publicar o texto e não devolveu o material. Assim, o filósofo ficou privado tanto do original datilografado quanto das cópias-carbono, e não dispunha de outras.
Essa versão alemã só não se perdeu porque em 1993, dois anos após a morte do filósofo, a viúva Edith Flusser recebeu o original datilografado que o editor afinal localizara. Disso se seguiu a publicação da obra, em 1994, com o título: Brasilien oder die Suche nach dem neuen Menschen (Brasil ou a busca pelo novo homem), o que estimulou a publicação da versão em português.
A Fenomenologia do brasileiro se divide em nove capítulos: ‘Em busca do novo homem’, ‘Imigração’, ‘Natureza’, ‘Defasagem’, ‘Alienação’, ‘Miséria’, ‘Cultura’, ‘Língua’ e ‘Diagnóstico e prognóstico’. No primeiro, Flusser reflete sobre a situação da humanidade no final do século 20, apontando o esgotamento do que se convencionou chamar de ‘história’ e o possível advento de uma ‘pós-história’. Nesse contexto da busca por um ‘novo homem’ é que se torna significativa a análise flusseriana de vários aspectos da vida brasileira.
No segundo, ‘Imigração’, o filósofo fala da experiência como imigrante no Brasil, a partir da década de 1940, dando ênfase ao choque sofrido no encontro com as massas humanas nas grandes cidades do país. Flusser então sugere: nessas massas urbanas amorfas ocorre de início uma mistura de etnias, religiões, usos e costumes, que, com o tempo, poderia levar a uma síntese, por meio da qual o Brasil forneceria ao mundo um modelo de desenvolvimento humano e de convivência pacífica entre povos de origens muito diferentes. Em ‘Natureza’, apresenta uma desconcertante visão sobre a natureza brasileira.
Para ele, a paisagem do país não é paradisíaca, mas maçante e opressora, e por isso se desenvolve no Brasil uma humanidade robusta e cooperativa entre si (para enfrentar os desafios do mundo natural), e é exatamente a partir daí que poderia surgir o ‘novo homem’.
Defasagem e alienação
‘Defasagem’, o quarto capítulo, retoma a questão da nova humanidade a partir de outra síntese. A ‘defasagem’ seria a corrida desenfreada das elites brasileiras para se equiparar, por imitação, ao padrão dos países ‘desenvolvidos’, sem considerar as especificidades do país. A alternativa a isso, que Flusser vê em fenômenos culturais brasileiros, é uma síntese de elementos do exterior e do interior – que, novamente, poderia fornecer ao mundo um novo tipo humano.
Em ‘Alienação’, o filósofo discute esse fenômeno de países industrializados e as formas como poderia ocorrer no Brasil. E conclui que, devido a aspectos do modo de ser do brasileiro, a alienação pode se transformar em “engajamento” (como exemplos, cita fenômenos apropriados pela cultura de massas: futebol, loterias e carnaval).
Na sexta parte, ‘Miséria’, trata da extrema pobreza material do Brasil na década de 1960 e adverte que, se o Brasil usar maciçamente a tecnologia dos países ‘históricos’, por meio de importação direta, pode perder suas características positivas.
O capítulo ‘Cultura’, dedicado aos fenômenos culturais brasileiros, aponta que os mais criativos (que conquistaram reconhecimento mundial) são aqueles em que houve síntese verdadeira entre elementos populares e eruditos, nativos e exógenos. Já em ‘Língua’, Flusser enfoca as peculiaridades do português falado no Brasil, com as contribuições indígenas, africanas e dos imigrantes de diversas origens, resultando em uma língua plástica e muito afeita à criação poética.
No último capítulo do livro, o filósofo defende que a difícil situação que o mundo vivia (e ainda vive) poderia ser superada se fosse encarada como um jogo que pudesse ser não apenas vencido, mas também “fruído”. O Brasil, diz ele, poderia contribuir muito para isso, com o jeito “jocoso” de seu povo, confirmado em um dos significados da palavra ‘jogo’ em português – o de ‘brincadeira’. Isso significa, para Flusser, que a única saída para a humanidade seria encarar de frente o jogo absurdo em que a realidade se transformou.
A Fenomenologia do brasileiro sugere que nossos compatriotas se encontram em vantagem nessa corrida.
A obra encerra um ciclo da produção de Flusser, pois foi o último texto de maior extensão escrito pelo filósofo, antes de se estabelecer definitivamente na Europa, após ter residido mais de 30 anos no Brasil. O judeu tcheco, fugido de Praga em 1940 no momento da invasão nazista, chegou ao nosso país após breve passagem pela Inglaterra. Desde o início da década de 1960, Flusser se firmou como um dos intelectuais mais criativos em atividade no Brasil, sendo que, no começo da década seguinte, de volta à Europa por razões de ordem política, econômica e pessoal, o filósofo se tornou mundialmente conhecido por sua Filosofia da caixa preta (título da edição brasileira) e por outros livros que anunciavam o advento dos media digitais.
Tendo em vista o acima exposto, torna-se evidente que uma reedição da Fenomenologia do brasileiro em muito contribuiria para uma reflexão sobre a situação atual do Brasil e também sobre as perspectivas do país nas próximas décadas.
Rodrigo Duarte
Departamento de Filosofia
Universidade Federal de Minas Gerais
Texto originalmente publicado no sobreCultura 17 (outubro de 2014).