Gosto muito do trabalho do artista plástico holandês Maurits Cornelis Escher (1898-1972) – aliás, como a grande maioria dos físicos e matemáticos. Ele, sem dúvida, foi um gênio da imaginação e um artista gráfico muito habilidoso.
Mas, talvez, poucos saibam de sua modéstia. Ao ganhar um prêmio do governo holandês em 1965, declarou (numa tradução caseira): “Meus assuntos geralmente […] são lúdicos. Não posso evitar zombar de todas as nossas certezas imutáveis. É divertido, por exemplo, confundir deliberadamente duas e três dimensões, o plano e o espaço, ou brincar com a gravidade. Você tem certeza de que o chão não pode ser também o teto? Tem absoluta certeza de que você vai para cima quando sobe uma escada? […] Faço essas perguntas que, à primeira vista, parecem disparatadas, primeiramente, para mim mesmo – pois sou meu primeiro espectador – e, depois, para os outros, que são generosos a ponto de virem ver meu trabalho. É prazeroso perceber que bastante gente gosta desse jeito brincalhão e não tem receio de olhar para a natureza relativa da dura realidade”.
Em geral, podem-se apreciar seus quadros sem se atinar para as intensas conexões entre seu trabalho, a física e a matemática, pois são obras (geralmente, gravuras) muito elaboradas e sofisticadas do ponto de vista gráfico. Muitas delas, num segundo exame, revelam-se impossíveis – e a chave dessa impossibilidade, muitas vezes, está na matemática. Pode-se dizer que seus trabalhos, em sua maioria, são metáforas visuais de conceitos matemáticos.
Um dos trabalhos de que mais gosto se chama Queda d’água. Duas torres, lado a lado, servem de suporte a uma canaleta que transporta água que cai e faz girar uma roda d’água. Tudo parece plausível à primeira vista, mas logo se percebe que ele brincou com as leis da perspectiva, e o ponto de fuga está no lugar ‘errado’ – o que diria, por exemplo, o pintor renascentista italiano Piero della Francesca (1415-1492) sobre esse quadro?
Mais: do ponto de vista da física, uma possível leitura de Queda d’água seria atribuir à gravura uma ‘quebra da lei da conservação da energia’, o que nos levaria – por meio de um teorema enunciado pela matemática alemã Emmy Noether (1882-1935) – a conexões com as simetrias mais fundamentais do espaço-tempo. Por exemplo, cada parte do quadro, localmente, faz sentido e se comporta como esperamos das leis da física: a água cai sob a ação da gravidade e se movimenta em linha reta etc. Mas, globalmente, percebemos que há algo inconsistente. As torres têm a mesma altura, mas, na da esquerda, há um andar a mais do que na direita.
Esse trabalho de Escher foi inspirado num triângulo impossível descrito pelo matemático britânico Roger Penrose.
Outra característica fascinante dos trabalhos de Escher: os padrões geométricos que preenchem o plano, conhecidos como tilings (algo como ‘azulejos’). Os matemáticos e os cristalógrafos tinham estabelecido de forma abstrata as leis que regulam tais padrões – e sabemos que Escher se correspondia com pesquisadores dessas áreas para discutir essa questão.
Em 2010, no artigo ‘The mathematical side of M. C. Escher’ [O lado matemático de M. C. Escher, disponível aqui], Doris Schattschneider argumenta que Escher demonstrou, de forma intuitiva, dois teoemas de um ramo da matemática chamado grupos de simetrias. Nada mal para alguém que dizia ter sido “estudante ruim de aritmética e álgebra”. E o motivo que Escher dá para esse baixo desempenho escolar soa paradoxal para quem conhece sua obra: “Porque eu tinha, e ainda tenho, grande dificuldade com abstrações de números e letras.”.
João Torres de Mello Neto
Instituto de Física,
Universidade Federal do Rio de Janeiro