Já comentamos anteriormente na Ciência Hoje que o número de bactérias normalmente abrigadas pelo corpo humano supera em pelo menos 10 vezes o número de células que compõem seus diferentes tecidos e órgãos. Assim, tomando apenas o aspecto quantitativo, temos uma natureza mais bacteriana que humana. Entretanto, os taxonomistas, que levam em consideração os caracteres anatômicos macroscópicos, não têm dificuldade em classificar um indivíduo saudável, no qual as bactérias permanecem restritas ao sistema digestório, como pertencente à espécie Homo sapiens.

Descobertas recentes vão nos forçar a revisar conceitos tradicionais e finalmente aceitar que até o estilo de vida de um indivíduo, com suas dietas e hábitos, tem muito mais envolvimento com a flora intestinal do que supúnhamos

Já sabíamos que esses comensais têm um papel fisiológico em nossas vidas, já que são os responsáveis pela síntese das vitaminas B e K, além de auxiliarem na digestão de ácidos biliares e esteróis. O que talvez seja novidade é a importância crescente que a microbiota exibe em relação a muitos outros parâmetros fisiológicos. Descobertas recentes vão nos forçar a revisar conceitos tradicionais e finalmente aceitar que até o estilo de vida de um indivíduo, com suas dietas e hábitos, tem muito mais envolvimento com a flora intestinal do que supúnhamos.

A composição da microbiota, por exemplo, é considerada um fator que predispõe à chamada síndrome metabólica. Indivíduos com essa síndrome têm pelo menos três das seguintes anomalias: obesidade abdominal, pressão alta, glicose elevada, alta taxa de triglicerídeos e níveis baixos do colesterol ‘bom’ (HDL). Outra situação ligada à microbiota envolve os adoçantes artificiais não calóricos (AANC), como sacarina, sucralose e aspartame.

Consumidos por milhões de pessoas, eles são classificados de não calóricos por não sofrer metabolização: passam intactos pelo sistema digestório e são excretados. Em trabalho recentemente publicado on-line na revista Nature, Jotham Suez e colegas apresentaram resultados impressionantes, revelando que a expectativa de emagrecer ou engordar depende em grande parte da microbiota.

Remédio
É possível que, em breve, a chamada medicina personalizada tenha que levar em conta um prontuário que contenha não apenas a composição gênica, mas também a da microbiota do indivíduo. (foto: Rodrigo Tejeda/ Flickr – CC BY-NC-ND 2.0)

Para começar, os AANC induziram rapidamente (em horas) intolerância à glicose, isto é, produziram níveis aumentados de glicose sanguínea semelhantes aos encontrados em diabéticos. Os AANC também modificaram a própria composição da microbiota – vale lembrar que a dieta age como fator seletivo das bactérias intestinais e que, dependendo da população prevalente, a obesidade pode ser uma consequência. 

O grupo também mostrou que antibióticos podem abolir as alterações metabólicas induzidas pela microbiota e que o transplante desta para outros animais reproduzia neles o quadro dos animais doadores.

 

Adoçantes engordam

Esses resultados foram obtidos em camundongos, mas foi possível estabelecer uma ponte com humanos por meio da pesquisa de hábitos nutricionais em 381 indivíduos não diabéticos. Nesse grupo, foram encontradas várias correlações positivas entre o uso desses adoçantes e aspectos como ganho de peso, medidas de obesidade abdominal, altos níveis de glicose sanguínea e outros. Destaque-se aqui o resultado que aponta que, para certas populações, o consumo de adoçantes engorda!

As bactérias vão além: afetam a resposta do corpo ao tratamento médico

As bactérias, no entanto, vão além: afetam a resposta do corpo ao tratamento médico. Em 2013, trabalho publicado na revista Science por Sophie Viaud e colegas mostrou que a ciclofosfamida, droga que estimula respostas imunes antitumorais usada na quimioterapia do câncer, age alterando a composição da microbiota de modo análogo ao descrito acima para os AANC. A ciclofosfamida induz a translocação de cepas de certo tipo de bactérias (Gram-positivas) do intestino para os órgãos linfoides, onde, então, a resposta imune é estimulada.

O que fica claro, nos estudos descritos aqui e em muitos outros, é a interação muito próxima que ainda existe entre nós e nossos ancestrais, as bactérias. É inteiramente possível que, em breve, a chamada medicina personalizada tenha que levar em conta um prontuário que contenha não somente a composição gênica, mas também a da microbiota do indivíduo.

 

Franklin Rumjanek
Instituto de Bioquímica Médica
Universidade Federal do Rio de Janeiro

 

Texto originalmente publicado na CH 320 (novembro de 2014). Clique aqui para acessar uma versão parcial da revista. 

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