A sociologia política e a história do Brasil devem ser imensamente gratas à matemática do ensino médio. Não fosse a reprovação no vestibular por um tropeço em uma equação de segundo grau, José Murilo de Carvalho teria cursado economia. Mas quis o destino – ou uma sólida educação voltada às humanidades – que um de nossos mais respeitados intelectuais seguisse pelas veredas das ciências sociais. Sorte nossa.
Mineiro de Piedade do Rio Grande, José Murilo nasceu em 1939 em uma modesta fazenda de gado leiteiro, sem luz elétrica nem água encanada, onde viveu até os 10 anos de idade. Segundo mais velho de 10 irmãos, lá teve uma infância dura, mas feliz. Tinha que participar das atividades rurais – tirar leite de manhã cedo – e das tarefas domésticas – recolher penicos e lavar os pés enlameados dos tios no fim da tarde. À noite, porém, havia espaço para a fantasia: com os irmãos, no chão de terra batida da cozinha, sentava-se junto ao fogo para ouvir as fantásticas histórias que Cecília, empregada analfabeta da casa, contava.
Andava e corria descalço pela propriedade fundada por seu bisavô e só foi calçar sapatos regularmente quando seu pai – que dava aulas aos filhos em meio às vacas – decidiu lhes dar uma educação formal. Aos 10 anos, José Murilo partiu com o irmão mais velho para o Seminário Seráfico Santo Antônio, em Santos Dumont (MG). “O regime de internato era duro”, lembra. “O seminário marcou minha formação”. Após cinco anos estudando sob o austero regime de frades franciscanos, novo destino, dessa vez mais longe: outro seminário, em Daltro Filho (RS), onde cursaria dois anos de filosofia.
José Murilo queria seguir a carreira de agronomia, mas, ciente de suas limitações na formação de exatas e biológicas, optou pela economia. Levou bomba em matemática. A alternativa mais próxima de sua educação clássica foi o curso de sociologia política, na Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG). Passou em segundo lugar. Seu brilho começava a aparecer.
Ainda estudante, publicou seu primeiro artigo, sobre o poder local em Barbacena (MG). A partir daí, viria uma sucessão de artigos, capítulos e livros de repercussão nacional. Muitos deles com tradução em outros países.
Dissecou em suas obras o Brasil do Império e da Primeira República. Com elas, ganhou prêmios importantes, como o de melhor livro de 1988 da Associação Nacional de Pós-graduação em Ciências Sociais (Anpocs) – Os bestializados – e por duas vezes o Jabuti – em 1991, com A formação das almas: o imaginário da República no Brasil e, em 2008, com Dom Pedro II: ser ou não ser. Ganhou ainda o prêmio Casa de las Américas por A cidadania no Brasil: o longo caminho, em 2001. Atuou também na área de divulgação: fez parte do conselho editorial da Ciência Hoje e da Revista de História, da Biblioteca Nacional.
Em sua passagem pela Universidade Stanford (EUA), onde concluiu o mestrado (1969) e o doutorado (1975) em ciência política, teve contato com nomes de peso das ciências sociais, como Gabriel Almond, Heinz Eulau, Sidney Verba. A tese de doutorado, em que analisa o perfil das elites políticas brasileiras no século 19 e sua relação com os partidos imperiais, deu origem a uma obra de fôlego, publicada em dois volumes: A construção da ordem: a elite política imperial e Teatro de sombras: a política imperial.
As principais instituições de ensino e pesquisa do país em humanidades contaram com o lampejo erudito de José Murilo. Ele ajudou a criar a pós-graduação em ciência política na UFMG e o doutorado na mesma área no Instituto Universitário de Pesquisas do Rio de Janeiro (Iuperj) e colaborou na pós-graduação em história na Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). Orientou 12 monografias, 20 dissertações de mestrado e 19 teses de doutorado. Trabalhou ainda como pesquisador na Casa de Rui Barbosa e no Centro de Pesquisa e Documentação de História Contemporânea do Brasil.
No exterior, foi pesquisador e professor visitante do Instituto de Estudos Avançados, em Princeton (EUA), nas universidades de Notre Dame, Irvine, Stanford (todas nos EUA), Leiden (Holanda), Oxford e Londres (Inglaterra) e na Escola de Altos Estudos em Ciências Sociais (França).
Em 2003, foi eleito membro da Academia Brasileira de Ciências e, no ano seguinte, da Academia Brasileira de Letras. Recebeu homenagens importantes, como a Medalha de Oficial e Comendador da Ordem de Rio Branco (1989), a Grã-Cruz da Ordem Nacional do Mérito Científico (1998) e o Prêmio Almirante Álvaro Alberto (2008). Desde 2011, é professor emérito da UFRJ, onde lecionou por 12 anos até se aposentar.
Misto de historiador, sociólogo e cientista político, José Murilo é um intelectual que, como seu pai, preza a ética do trabalho e cultiva a honestidade, a correção e a civilidade. E como Aluízio Teixeira, ex-reitor da UFRJ, o definiu certa vez, é acima de tudo um grande pensador do Brasil.
Maria Alice Rezende de Carvalho
Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro
Alicia Ivanissevich
Ciência Hoje/ RJ