Na próxima vez que comprar um filtro solar, o leitor se lembrará desta reportagem. Pois nos rótulos dos produtos – anunciados em horário nobre com direito a cenários paradisíacos de apoteose ao verão – escondem-se informações que lhe farão pensar duas vezes antes de aplicá-los à pele. Recentes investigações científicas revelam um segredinho que a publicidade não diz: filtros solares levam, em suas formulações, compostos químicos que podem provocar distúrbios no sistema hormonal de mamíferos. São os chamados interferentes endócrinos.
A indústria cosmética usa, hoje, 26 substâncias orgânicas com propriedades bloqueadoras de raios ultravioleta. Destas, 19 provocam alterações hormonais. “O dado é alarmante, mas ainda pouco conhecido pela população”, comenta a bióloga Mariana Alonso, do Instituto de Biofísica da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) e da Faculdade de Oceanografia da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Uerj).
É que pesquisas a esse respeito começaram apenas recentemente. Foi em 2010, na Europa, que veio à tona o primeiro estudo a identificar, em águas costeiras, traços de filtro solar. Ao contrário do que se pensa, tais substâncias não são oriundas apenas dos tradicionais produtos que aplicamos diretamente na pele para nos proteger do Sol. Elas estão também em cremes de beleza, xampus, maquiagens, tecidos, lentes de óculos escuros e mesmo automóveis, cujas tintas levam fator de proteção contra a radiação ultravioleta.
Bloqueadores solares são onipresentes em nossa vida. Por isso cientistas passaram a dedicar, ao longo dos últimos cinco anos, olhar atento aos componentes químicos desses produtos. E as surpresas não foram boas.
Alonso publicou em 2013 o primeiro estudo que constatou a presença de octocrileno – um dos interferentes endócrinos mais usados em cosméticos com fator de proteção solar – em mamíferos aquáticos. Altos níveis da substância foram encontrados no fígado de golfinhos (Pontoporia blainvillei). Foram animais coletados entre 1994 e 2009 na faixa litorânea que vai do Rio Grande do Sul ao Espírito Santo. Eram, na verdade, golfinhos vitimados por encalhes nas areias das praias; ou por capturas acidentais em redes de pesca. Dos 56 animais submetidos à análise, 21 estavam contaminados.
“Os níveis mais altos de octocrileno foram aferidos nos golfinhos do litoral do Rio Grande do Sul; mas a frequência maior de contaminação – maior percentual de espécimes com níveis detectáveis da substância – foi verificada no estado de São Paulo”, constatou a bióloga da UFRJ.
“Em todos os casos, foram índices de contaminação tão elevados que nossos colegas espanhóis, que nos auxiliavam nos exames de laboratório, chegaram a pensar que estávamos analisando amostras de protetores solares; e não amostras dos próprios golfinhos”, conta Alonso. As concentrações variaram de 90 a 780 nanogramas para cada grama (ng/g) de lipídio do animal; quando o valor esperado deveria ser inferior a 23 ng/g, limite de detecção da técnica.
Confira o mapa interativo preparado pela CH On-line que mostra os locais onde foram encontradosgolfinhos contaminados por octocrileno
“Na verdade, eles não deveriam apresentar contaminação nenhuma por esse tipo de substância”, diz a pesquisadora. Os resultados da investigação foram divulgados no periódico Environmental Science & Technology (v. 47, 2013).
Ao analisar um dos golfinhos, os pesquisadores notaram que se tratava de uma fêmea grávida. Decidiram então, por curiosidade, analisar sua placenta. “O órgão também estava contaminado por octocrileno.”
Muito além do bronzeado
“Se há octocrileno na placenta de golfinhos, é muito provável que ele esteja também na placenta humana”, avisa a bióloga. “Pois, bioquimicamente, somos similares aos mamíferos marinhos.” Esses animais podem ser entendidos como ‘espécie sentinela’: o que acontece com eles pode acontecer – ou já está acontecendo – com o ser humano.
Alonso preocupa-se especialmente com mulheres grávidas. “Nos momentos críticos do desenvolvimento do feto, qualquer desregulação hormonal pode ser altamente nociva”, diz. “Em experimentos com ratos, perturbadores endócrinos já provocaram formação de animais que tinham, ao mesmo tempo, órgãos sexuais femininos e sistema nervoso central com características comportamentais e hormonais de indivíduos do sexo masculino.”
Segundo a pesquisadora, as substâncias presentes nos filtros solares são estrogênicas e antiandrogênicas. Em outras palavras: estimulam a produção de estrogênio (hormônio feminino) e inibem a produção de testosterona (hormônio masculino). “Por isso feminizam os organismos.”
Novidade: cientistas já encontraram interferentes endócrinos no leite materno também. Estudo liderado pela toxicologista Margret Schlumpf, da Universidade de Zurich, detectou concentrações de até 135 nanogramas de octocrileno em 67% das amostras que analisou, enquanto os 33% restantes apresentaram níveis não detectáveis da substância. O trabalho foi publicado no periódico Chemosphere em 2010 (v. 81, nº 10). Segundo a pesquisadora, essas concentrações são associadas diretamente ao uso de cosméticos e filtros solares. “O estudo revelou correlação significativa entre o uso de produtos contendo filtros UV e sua presença no leite materno”, escreve Schlumpf.
Henrique Kugler
Ciência Hoje/ RJ
Este texto foi atualizado para incluir a seguinte alteração:
No estudo liderado pela toxicologista Margret Schlumpf, da Universidade de Zurich, o percentual de amostras onde não foi detectado octocrileno é de 33%, e não 23%, como dito anteriormente. (26/06/2014)