“Dar a alma”. A expressão, em italiano (dare l’anima), é altamente significativa da realização de um esforço intenso, algo que corresponde, em português, a “dar tudo (o melhor) de si mesmo”. Talvez, a partir desse significado implícito no título do livro, possamos perscrutar, introdutoriamente, duas manifestações evidentes e presentes nele: uma que diz respeito ao autor, outra que diz respeito à obra.
Começamos traçando a que diz respeito ao autor. Segundo o que nos revelou o próprio historiador, é significativo o fato de que, para realizar esse trabalho, ele dedicou quase duas décadas de complexas indagações, partindo de documentos de arquivo relativos a um processo por infanticídio intentado em Bolonha, em dezembro de 1709, contra a jovem e pobre mãe Lucia Cremonini: documentos que, cada vez mais, exigiram um delicado exercício de complementação e alargamento, tanto da pesquisa documental quanto da problemática que esta apontava para a investigação.
Por outro lado, vale destacar ainda o paralelo esforço de uma produção literária que, de algum modo, sempre acompanha a constituição de uma pesquisa. O fato é tanto mais significativo por tratar-se de um autor que, em sua produção historiográfica geral, se destaca pela extraordinária erudição e pela particular elegância literária. Esse aspecto adquire maior destaque no caso deste livro, que recebeu um reconhecimento justamente literário (Prêmio Nacional Literário Pisa, em 1997), em uma rara e difícil coincidência com a produção de uma obra historiográfica! Enfim, no caso do historiador-escritor Adriano Prosperi, podemos ressaltar, nesta obra, a preciosa materialização de um exercício – historiográfico, mas também literário – no qual o autor ‘deu sua própria alma’.
O título revela e pretende sublinhar o objetivo geral do livro, que, partindo do caso (documental) concreto, no qual encontra estímulo e provocação o desafio historiográfico, procura reconstruir uma “história da alma”, isto é, de sua concepção ao longo da história (sobretudo a do cristianismo). Um relato que não perca de vista as problemáticas levantadas pela análise do fato concreto (espécie de micro-história), mas que não se resolve e não pode encontrar solução apenas nele, estimulando uma reflexão historiográfica mais abrangente que, inclusive, leva à reflexão sobre algumas problemáticas, novas e complexas, dos dias de hoje.
Por outro lado, convém destacar como o título diz a respeito, inicialmente, da personagem principal ou, em termos mais peculiares e desafiadores, dos dois protagonistas que emergem e ao redor dos quais se tece a narrativa historiográfica:
1) a jovem e pobre mãe Lucia Cremonini, personagem que impõe o relativo grande desafio historiográfico de tentar procurar entender o que é possível conhecer, por parte do historiador, de uma figura como esta. Isto é, de quem permanecera às margens de uma sociedade e que, para a sociedade de sua época, ‘perdeu sua alma’ (e por isso será destinada a morrer sem esta: ut moriatur et anima ab eius corpore). Seu gesto, o infanticídio, assume – ao longo da história moderna – cada vez mais a conotação de um pecado grave, até se tornar, finalmente, um crime;
2) ou, ainda, o maior desafio de tentar entender a história de uma ‘alma’ tão passageira como a de quem ingressa no tempo da vida pelo brevíssimo espaço de um nascimento, subitamente seguido pela morte (o filho, vítima do infanticídio: uma alma à qual não foi permitido não só habitar o mundo, mas tampouco debruçar-se nele).
Vida e morte
Eis o problema inquietante lançado por essa história: a vida de uma jovem que se entrelaça com a do filho por ela concebido, gerado e morto; isto é, ao qual ela deu e do qual tirou a própria alma. E o equívoco do possessivo ‘própria’ (do filho ou da mãe?), aqui, surge na perspectiva segundo a qual a vida e a morte do filho derivam da protagonista e reagem sobre ela, em uma ligação indissolúvel na qual a violência, feita (o infanticídio) e sofrida (o estupro), representa uma parte essencial.
Em sua extensão histórica, o problema proposto remonta à Antiguidade, centrando-se, sobretudo, no espaço privilegiado da Idade Moderna. Por outro lado, do tratamento do tema desprende-se a admoestação nele expresso, como lição de humildade do ofício do historiador: um sujeito que é ao mesmo tempo autor e ator e ao qual cabe “representar qualquer pessoa” – esse “objeto da representação”, todavia, não é exatamente escolhido por ele, mas apenas lhe é destinado. A um obscuro destino cabe a escolha, no interior da qual o autor (historiador) torna-se, por sua vez, apenas um ator recitando a parte escolhida por outrem.
Por meio da atenção dedicada à protagonista central do processo, a indagação proposta por Prosperi procura traçar uma ‘história da alma’, isto é, de sua concepção, entre “atores: pessoas e não pessoas”. Tratar dessa história significa debruçar-se nos delicados e extraordinários problemas do nascimento, da vida e, sobretudo, do lugar privilegiado a partir do qual esses problemas se põem, isto é, do observatório da morte – aquela dos outros, naturalmente.
Como em toda a sua rica produção historiográfica e no amplo panorama de estudos nos quais enveredou, neste livro o autor destaca-se pela atenção aos detalhes, em relação à sua pesquisa e às análises propostas, que, todavia, não se resolvem exclusivamente em algum tipo de ‘micro-história’. Ao contrário, essa atenção especial lhe permite encaminhar-se para um percurso analítico constituído por ricas, complexas e originais interpretações do panorama histórico mais geral e de seus mais ricos desdobramentos historiográficos, para os quais Prosperi sempre manifestou uma erudita, atentíssima e cuidadosa dedicação.
Nesta obra, particularmente, essas características se evidenciam lá onde seu autor destaca como o trabalho do historiador deve ultrapassar os fatos miúdos (a, muitas vezes equivocada, ‘micro-história’), para desembaraçar os dois fios distintos que tecem a história de cada pessoa: “o fio cinzento daquilo que se repete a cada geração” (o que costumamos identificar como tradição, como se não fosse possível qualquer novidade) e “aquele outro fio que apresenta uma vez, e apenas uma vez, o tom inconfundível de uma cor destinada a nunca mais reaparecer”. Justamente a esse respeito destaca-se o agudo olhar historiográfico dessa obra e de seu autor, exemplo magistral do convite para a especificidade do ofício do historiador.
No fundo, a relação desses dois fios – que tecem a história de cada pessoa e que ao historiador cabe evidenciar – depende do “entrelaçamento inextricável entre ocasiões e respostas, coerções e liberdades de que é feita a vida”: apenas o tempo e o contexto, talvez, “resolvem a contradição entre a absoluta singularidade da vida de cada pessoa, por definição inconfundível com qualquer outra, e a adaptabilidade extrema dos indivíduos ao jogo de conformação e resistência às ocasiões de sua época e de seu ambiente”.
Do pecado ao crime
É a partir dessas características do trabalho historiográfico que ‘o problema’ inquietante lançado por essa história particular torna-se exemplo e base comparativa de uma ‘tradição’, essencial à reconstrução dos momentos peculiares que, com suas novidades e tons inconfundíveis, constituem as diretrizes fundamentais para acompanhar uma ‘história da alma’. Paralelamente a essa história, o texto costura e acompanha uma ‘história da justiça’, entendida enquanto processo não sempre linear e tanto menos unívoco, mas que, peculiarmente na história do Ocidente moderno, leva de uma concepção do pecado para a de crime.
A partir dessas características o trabalho envereda, entre outros percursos, numa extraordinária análise das doutrinas das igrejas (remetendo, muitas vezes, para além delas, até a Antiguidade) com relação à alma, às disputas surgidas a seu redor entre diferentes contraposições religiosas, particularmente durante a Idade Moderna. Sobretudo, nesta, ao redor do momento sacramental central para o catolicismo, isto é, o batismo (com seu imperativo e sua função de salvar o maior número possível de almas), até enfrentar o desafio de tentar entender a transformação e a nova conceituação da alma no âmbito do surgimento e da afirmação de sua nova concepção científica: percurso que leva até as espinhosas e problemáticas questões científicas da sociedade contemporânea.
Nesta última, questões como as postas pela engenharia genética (intervenções científicas com células-tronco embrionárias, por exemplo, ou envolvendo operações sobre o DNA) levantam novas incertezas e discussões sobre a natureza humana, reatualizando antigas questões e definições da ‘pessoa’. Essas questões mostram, mais uma vez, a necessidade de repensar a base de formação e transformação histórica da concepção da alma e, com essa, a importância do esforço de compreensão da origem da vida e das possibilidades humanas de interferir no seu curso. Concepção, compreensão e possibilidades estreitamente entrelaçadas, que o primoroso trabalho de Prosperi nos restitui para uma mais atenta reflexão histórica e, também, com a relevância dos decorrentes temas éticos contemporâneos.
Adriano Prosperi
São Paulo, Companhia das Letras, 2010
528 p., R$ 64
Adone Agnolin
Departamento de História da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas
Universidade de São Paulo
Texto originalmente publicado no sobreCultura 15.