Nas lições sobre figuras de linguagem consta, em lugar nobre, a da metonímia, que proporciona uma série de recursos linguísticos, sem os quais nossa fala cotidiana – para não dizer literária – seria virtualmente impossível. Um de seus atributos é a possibilidade de aludir a uma totalidade por meio da menção a apenas uma de suas partes. Na expressão “a mão que empurra”, usada para descrever a força que precipitou alguém em um abismo, o termo ‘mão’ substitui, na verdade, o agente responsável pela gentileza.

Metonímias, contudo, não são apenas figuras de linguagem. Podem ser, por assim dizer, figuras da vida. Se aplicarmos a elas uma de suas primas-irmãs, a celebérrima metáfora, podemos dizer, metaforicamente, que há ‘metonímias sociais’. Fatos e fenômenos sociais com precipitação instantânea sobre a vida cotidiana podem, para além de seus efeitos imediatos, ser vistos como indicadores de configurações mais amplas. A literatura dos sobreviventes dos campos de extermínio nazistas utiliza com frequência esse poderoso recurso estilístico. É o caso pungente descrito no clássico livro É isto um homem? pelo escritor italiano Primo Levi (1919-1987), sobrevivente de Auschwitz: roupas infantis, penduradas por mães zelosas para secar na cerca de arame farpado do campo de concentração, na véspera da partida para o campo de extermínio. A visão do detalhe evoca a enormidade do horror do Holocausto de modo muito mais empático que qualquer enumeração estatística dos mortos por país, idade ou gênero.

Clique na imagem para assistir a uma reportagem veiculada no telejornal Bom Dia Brasil, da Rede Globo, sobre as agressões contra passageiros que tentavam entrar nas composições de um trem na estação de Madureira, Zona Norte do Rio de Janeiro.

A cidade do Rio de Janeiro testemunhou na manhã de 16 de abril último um evento metonímico. Em Madureira, uma estação da Zona Norte carioca, ‘seguranças’ uniformizados e contratados pela empresa concessionária dos serviços de transporte ferroviário foram flagrados por uma câmera de televisão a surrar passageiros com socos, pontapés e golpes de um chicote improvisado. A cena foi placidamente assistida por um policial militar, cujo comportamento evidenciava enorme familiaridade com o que acontecia. As cenas de brutalidade são chocantes. Sob o pretexto de fazer com que as pessoas entrassem nos vagões, para permitir a partida da composição, as supostas ‘forças da ordem’ agrediram fisicamente os passageiros.

Como de hábito, a busca de elucidação do fato seguiu o roteiro usual: determinar os responsáveis e aplicar as punições exemplares de praxe. Se depender da empresa, vai sobrar para os ‘seguranças’ flagrados. Representantes da concessionária, ouvidos, declararam-se chocados com o comportamento de seus empregados, segundo eles, incompatível com as normas éticas internas da firma. Investigar quem são os perpetradores é importante, mas talvez não seja o que mais precisamos. É fundamental, além disso, ouvir os vitimados.

Nesse particular, os relatos são elucidativos. A violência acidentalmente registrada pela câmera – uma espécie de ombudsman errático dos desvalidos – é diária e habitual. Os maus-tratos aos usuários são frequentes, com uso regular da violência. É o velho e renitente hábito do uso da força ilegítima contra os segmentos populares que, mais uma vez, se manifesta. É como se uma cultura de castigo seletivo estivesse inscrita em nosso DNA civilizatório, a dizer que os pobres são um contingente passível de receber castigo físico. São eles as vítimas preferenciais da truculência policial e os que frequentam com mais assiduidade as gavetas dos necrotérios, sob a cobertura legal dos famigerados autos de resistência (a ‘desculpa’ oficial para a matança efetuada por agentes da ordem).

Há os que dizem que a democracia está firmemente consolidada no país. Apegam-se a dados que indicam o funcionamento pleno das instituições. Encantados, dedicam-se a descrevê-las e têm a pretensão de corrigir, por imperitas, as impressões em contrário. No entanto, a sensação é bem outra para os que têm seus corpos e suas vidas à disposição do castigo físico contumaz. É fundamental, sempre, escutá-los.

Renato Lessa
Instituto Universitário de Pesquisas do Rio de Janeiro,
da Universidade Candido Mendes,
e Universidade Federal Fluminense
rlessa@iuperj.br

 

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