Na esteira da expansão do crime organizado, surge nas metrópoles brasileiras um novo e trágico personagem: o adolescente vinculado ao varejo das drogas. No Rio de Janeiro, ele foi encarnado originalmente por Brasileirinho. Esse menino de 11 anos desafiou, das lajes da Rocinha, metralhadora em punho, a polícia fluminense, juntamente com os amigos Bolado, Naldo, Cassiano e Buzunga, todos adultos.
Estávamos em 1988, e os curtos dias de celebridade de Brasileirinho foram interrompidos de um modo que se tornaria rotineiro nos anos posteriores: execução pela polícia em suposto confronto armado. Muitas coisas estavam sendo gestadas ali, e esse novo ator se adensou, firmando presença nas bocas de fumo, nas redações de jornais e nas bancas acadêmicas.
Embora ainda escassa, a literatura sociológica sobre adolescentes e jovens vinculados ao crime armado já deu à luz trabalhos importantes. O livro de Diogo Lyra vem se somar com louvor a esse restrito conjunto de obras.
Trata-se de pesquisa com cerca de 30 adolescentes que cumprem medidas socioeducativas no Centro de Recursos Integrados de Atendimento ao Menor (Criam) de Nova Iguaçu (RJ), a maior parte deles, aparentemente, em função de vínculos com o comércio varejista de drogas.
Como bom sociólogo, o autor organiza, cataloga, categoriza, ordena e impõe uma interpretação fina às narrativas que colheu em campo. Daí surgem sujeitos morais como o playboy, o X-9, o sujeito homem, o vacilão, o mendigo, o cria, o caidinho.
Tomamos contato, ainda, com uma cartografia emocional engenhosamente construída, em que o ônibus, a pista, a boca, a favela e seus inumeráveis espaços são mais do que meros lugares de passagem, atuação ou moradia. Trata-se de espaços de significação, lugares em que experiências fundam os eixos orientadores do comportamento dos meninos e de seus léxicos valorativos.
O estudo revela um universo de representações inimagináveis para o leigo, cujo contato se restringe às versões sensacionalistas ou melodramaticamente paternalistas do mau jornalismo ou do assistencialismo barato.
A análise do conjunto de relatos denuncia a intervenção de um intérprete atento, imaginativo e prevenido contra as armadilhas das leituras apressadas.
O segundo capítulo, dedicado à metodologia, é uma bela reflexão sobre alguns dos dilemas e interpelações impostas ao etnógrafo, quando vai a campo.
A despeito de tantas virtudes, ou talvez exatamente por causa delas, alguns aspectos do livro são, no mínimo, intrigantes.
Logo na abertura, o autor declara que seu trabalho pretende ir além daqueles que definem esses meninos como “jovens em conflito com a lei”. Alega que assumir a categoria jurídica na análise sociológica enfatizaria questões relativas ao trabalho, à pobreza, à educação e à violência. Tal escolha, afirma Lyra, negligenciaria o tratamento do jovem como “objeto em si”.
Entre surpreso e curioso, o leitor atravessa o livro sem, todavia, se deparar com o prometido objeto em si, para a sorte do sociólogo. Ao contrário, temos fragmentos de depoimentos em que, a partir da experiência na ‘boca’, esses jovens armados do morro (é essa a categoria usada para dar identidade aos adolescentes) falam sobre suas percepções acerca de trabalho, pobreza, violência etc.
Sem qualquer elemento identificador, os fragmentos de relatos são apresentados de modo que o leitor fica sem saber se são extraídos de algumas dezenas, de meia dúzia ou de dois ou três informantes privilegiados.
Talvez por rechaçar a categoria jurídica (de fundo protetivo, diga-se), Lyra faz uma etnografia em que ignora quase completamente o espaço em que pesquisa. O fato de esses meninos estarem cumprindo medidas socioeducativas no momento em que travam contato com o pesquisador e lhe concedem entrevistas é irrelevante para a construção dessa ‘fábula sociológica’. Algumas poucas páginas são dedicadas à instituição e não há qualquer observação ‘etnográfica’ para além das entrevistas.
Finalmente, causa espanto que um pesquisador tão sofisticado teórica e metodologicamente, tendo sob controle os procedimentos consagrados do trabalho acadêmico, se refira tantas vezes aos estudos do campo como peças equivocadas e superficiais. Pior, que o faça com referências genéricas, sem citar as fontes, as questões ou as passagens que os tornam objeto do tratamento desrespeitoso.
Nesses momentos, os comentários destoam da qualidade geral dos argumentos, fazendo parecer que o autor dialoga com estereótipos extraídos de um senso comum pouco esclarecido, ou que lhe exasperam as ‘fábulas sociológicas’ discrepantes da sua.
Sinal de imaturidade, talvez, esse vício não é tão raro, e costuma funcionar como bengala argumentativa em momentos de crise substantiva das análises que dela fazem uso.
A despeito dos problemas apontados, o saldo do estudo de Diogo Lyra é positivo. Ainda jovem, ele certamente terá oportunidades de fazer ainda melhor aquilo que já faz bem e deixar de lado aquilo que não presta qualquer serviço para o debate sério e bem informado em campo de estudos tão importante.
Diogo Lyra
editora Mauad/Faperj
304 páginas – R$ 54
João Trajano Sento-Sé
Programa de Pós-graduação em Ciências Sociais
Universidade do Estado do Rio de Janeiro
Texto originalmente publicado na CH 303 (maio de 2013).