Em dezembro de 1996, em Cheshire (Inglaterra), Sally Clark chamou uma ambulância para socorrer Christopher, seu filho de 11 semanas de idade, que desfalecera após ter sido posto na cama. A criança foi levada para o hospital, mas morreu pouco depois. Segundo o legista, o menino fora vítima de infecção respiratória associada à Síndrome da Morte Súbita do Lactente (SMSL) ou ‘morte do berço’.
A SMSL é rara e tem causas desconhecidas: bebês com menos de um ano e aparentemente saudáveis morrem subitamente. Assim, a morte de Christopher causou consternação, mas foi considerada uma fatalidade.
Em 1998, no entanto, o segundo filho de Sally, Harry, de oito semanas, morreu em circunstâncias semelhantes. O legista – o mesmo que havia examinado Christopher – notou sinais de que o bebê poderia ter sido sacudido com violência. Desconfiado, consultou suas anotações sobre a autópsia de Christopher e concluiu que sua morte poderia ter sido causada por sufocamento.
Essas incertezas não foram despropositadas: os sintomas envolvidos são particularmente difíceis de diagnosticar, em especial em recém-nascidos. Nos dois casos, os corpos das crianças exibiram sinais de trauma, mas estes eram consistentes com sequelas das medidas de primeiros socorros usadas para tentar ressuscitá-las.
Porém, a coincidência de dois irmãos sucumbirem ao mesmo mal raro convenceu o legista de que as mortes não foram naturais. A polícia foi alertada e, um mês após a perda da segunda criança, Sally e o marido foram presos e acusados da morte dos filhos.
Após determinar que a advogada estava sozinha com os filhos nos dois incidentes, a polícia retirou a acusação contra o marido. Sally Clark foi indiciada por duplo infanticídio: Christopher teria sido sufocado; Harry, sacudido violentamente. A advogada foi levada a júri popular, e o caso recebeu ampla cobertura da imprensa.
No julgamento, a promotoria revelou episódios de depressão e consumo de álcool da ré, mas não produziu provas materiais de maus-tratos, já que as conclusões do legista estavam longe de ser definitivas. Seguiram-se dias de pareceres complexos – e muitas vezes contraditórios – de patologistas, psiquiatras, neurologistas e pediatras, mas nada suficiente para derrubar a tese da defesa: os meninos teriam sido vítimas da SMSL.
A acusação então convocou Roy Meadow, renomado pediatra, para testemunhar como especialista em SMSL: a opinião de Meadow selou o destino de Sally Clark.
Lei de Meadow
Pelas estatísticas governamentais, a incidência da SMSL era de 1 caso para cada 1.300 nascimentos em toda a população da Inglaterra, mas para famílias de alta renda em que a mãe tem mais de 26 anos e não fuma – como era o caso de Sally Clark – a incidência cai para um caso em cada 8.540 nascimentos. Meadow usou esse dado para calcular a probabilidade de dois filhos morrerem por SMSL simplesmente multiplicando 1/8.540 × 1/8.540, que resulta em cerca de 1 em 73 milhões.
Comparando esse valor com o número médio de nascimentos na Inglaterra (650 mil crianças por ano), o perito estimou o número de casos esperados de duas mortes por SMSL na mesma família.
No que ficou conhecido ironicamente como ‘lei de Meadow’, o pediatra concluiu: “uma morte por SMSL é uma tragédia, duas mortes são suspeitas e três mortes são, salvo prova do contrário, assassinatos”. Em vista desse parecer, a promotoria argumentou que a probabilidade de dois irmãos morrerem de SMSL é ínfima a ponto de poder ser descartada, e a única explicação seria premeditação: a ré teria matado os próprios filhos.
Apesar das incertezas dos patologistas, o testemunho de Meadow foi suficiente: em novembro de 1999, Sally Clark foi condenada à prisão perpétua.
O veredito chocou médicos e assistentes sociais, pois o perfil e o histórico de Sally não eram compatíveis com os padrões observados em casos de abuso infantil, que quase sempre têm antecedentes (prontuários hospitalares, queixas na polícia, testemunho de vizinhos etc.). Nesse caso, nada havia.
Hipótese falsa
Políticos, jornalistas e ativistas de direitos civis iniciaram campanhas para limpar o nome da advogada, mas a polêmica não arrefeceu: como conciliar a morte de duas crianças visivelmente saudáveis com a improbabilidade da causa dessas mortes?
A primeira rachadura no raciocínio de Meadow veio à tona quando estatísticos apontaram o possível equívoco do pediatra ao estimar o risco de casos duplos de SMSL: assumir indevidamente a independência de fatores.
A multiplicação das probabilidades (1/8.540 × 1/8.540) só seria válida se cada ocorrência da SMSL fosse independente, ou seja, se o fato de uma criança ter sido vítima não afetasse em nada a possibilidade de um irmão também ser vítima. Em outras palavras, não haveria predisposição para a SMSL entre familiares.
Porém, os especialistas intuitivamente desconfiaram que essa hipótese era falsa: afinal, quaisquer que sejam os fatores genéticos ou ambientais que levam à SMSL, eles devem atuar mais intensamente na mesma família. Em outubro de 2000, os advogados de Sally Clark entraram com recurso para anular a sentença, citando o problema com os cálculos de Meadow. Mas os juízes não foram convencidos: apesar de reconhecerem o possível equívoco, consideraram válido o princípio do argumento.
Sally Clark permaneceu presa.
Coube a Ray Hill, professor da Universidade de Salford (Inglaterra), debruçar-se sobre centenas de casos de SMSL para analisar os dados que pareciam conspirar contra a advogada.
Athayde Tonhasca Jr.
Scottish Natural Heritage, Perth (Reino Unido)