Originalmente ligada às práticas religiosas orientais, a meditação é hoje objeto de estudo da ciência e recomendada como terapia complementar para muitas condições médicas. No Brasil, é oferecida pelo Sistema Único de Saúde (SUS) desde 2006. Muito mais que apenas relaxar e combater o estresse, cientistas vêm mostrando que a prática meditativa tem a capacidade de mudar a estrutura e as funções cerebrais, favorecendo a atenção plena e a habilidade de foco.
Pesquisas desenvolvidas no Brasil investigam esses efeitos da meditação e tentam entender suas vantagens. Nesta entrevista, a bióloga Elisa Kozasa, do Instituto do Cérebro do Hospital Israelita Albert Einstein, e o neurocientista Luiz Eugênio Mello, da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp), à frente desses estudos, falam sobre seus resultados mais recentes na busca por compreender a ação do estado meditativo no cérebro e discutem a aplicação dessa prática no sistema público de saúde.
Ciência Hoje: Vocês vêm estudando os efeitos da meditação sobre o cérebro humano há mais de 10 anos. O que têm observado de mais interessante?
Kozasa: Publicamos um estudo na NeuroImage, bastante citado, em que comparamos pessoas que meditam com regularidade e pessoas que não meditam durante uma tarefa de atenção sustentada. Os dois grupos foram pareados por escolaridade, idade e gênero. Não diferenciamos o tipo de meditação que eles praticavam. Eram pessoas que meditavam há pelo menos três anos, três vezes por semana por meia hora no mínimo.
Havia pessoas que meditavam todos os dias, mais de uma hora. Esse critério mínimo foi estabelecido a partir de conversas com meditadores experientes. Observamos que quem não medita precisa ativar mais áreas cerebrais do que quem medita para ter o mesmo desempenho em uma tarefa de atenção. Enxergamos bem essa diferença em exames de neuroimagem funcional feitos nos dois grupos no Hospital Israelita Albert Einstein. É como se as pessoas que meditam regularmente tivessem um cérebro mais eficiente para desempenhar atividades que requerem atenção.
Quando falam de meditação, a que se referem exatamente? O que caracteriza a meditação? Basta sentar e prestar atenção na respiração?
Kozasa: Não há consenso na literatura sobre o que é meditação, mas basicamente são práticas em que se treina a atenção sustentada e se desenvolve certo nível de relaxamento físico e mental autoinduzido. O grande ganho das práticas de meditação é treinar a atenção, mas não a ‘atenção tensa’ e sim uma ‘atenção relaxada’, que permite ao indivíduo poder sustentar esse estado por longos períodos de tempo.
Então, outras práticas que envolvam atenção, como fazer origami, por exemplo, podem ter o mesmo efeito que a meditação clássica?
Mello: Há várias evidências que sugerem existir outras formas de meditar. Quando se está fazendo crochê ou pescando, por exemplo, concentrado numa dada atividade e a desempenhando conscientemente, há uma analogia com o processo de meditação. Mas não chegamos a fazer um estudo para comparar pessoas que meditam com aquelas que fazem esse tipo de atividade para saber se o efeito é o mesmo.
Kozasa: Há muitas questões ainda a ser analisadas. Uma delas é saber as diferenças entre práticas meditativas variadas. Os leigos podem pensar que meditar é só sentar de pernas cruzadas e prestar atenção na respiração, mas não é só isso. Existem diferentes técnicas de meditação. Hoje se fala, inclusive, no conceito de meditação informal, ou de práticas de mindfulness (atenção plena), que têm sido trazidas ao Ocidente. São estratégias que saem da meditação formal, sentada, e envolvem atividades cotidianas, mantendo a atenção naquela ação. As pessoas as praticam mesmo sem saber o que é mindfulness. Uma coisa é meditar e outra, o estado meditativo, que talvez possa ser atingido por meio dessas outras práticas informais.
O que acontece em nível fisiológico no cérebro de quem medita? Algum hormônio é liberado, alguma área específica é ativada?
Kozasa: Isso varia de acordo com o tipo de meditação. Fizemos um estudo em que tentamos ver se havia diferenças estruturais no cérebro das pessoas que meditam e não apenas diferenças funcionais, como observamos antes. Para isso, usamos um programa de computador desenvolvido pelo João Ricardo Sato, da Universidade Federal do ABC, que nos permitiu classificar os cérebros de meditadores e não meditadores com base em imagens estruturais cerebrais obtidas por ressonância magnética. Para nosso espanto, verificamos, com quase 95% de acurácia, que era possível distinguir o cérebro de uma pessoa que meditava do de outra que não o fazia. Foram considerados os volumes de 121 regiões do cérebro; algumas das regiões que mais se diferenciaram foram tálamo, giro pré-central, giro frontal inferior e o córtex entorrinal.
O que representam essas alterações cerebrais?
Kozasa: O tálamo é um ‘relê’ sensorial, que deixa passar ou bloqueia as informações enviadas pelos sentidos. Uma das habilidades desenvolvidas no processo de meditação é aprender a direcionar a atenção para um foco mais específico, em vez de receber de forma automática os dados sensoriais e responder a eles do mesmo modo. Em um estudo, usamos um teste de atenção e controle de impulsos. Mostramos aos voluntários palavras referentes a cores, mas pintadas de outra cor, como ‘vermelho’ escrito em azul, e as pessoas tinham que dizer a cor que viam e não a palavra. Essa tarefa exige atenção e controle de impulsos, habilidades desenvolvidas à medida que se treina a prática meditativa. Ao contrário do que parece, ficar sentado mantendo um foco de atenção não é um processo passivo, é ativo e exige aprendizado.
Mello: A questão do tálamo é muito importante. Nosso sistema nervoso é bombardeado com informações de toda natureza a todo instante. Essas informações podem ou não ganhar acesso ao córtex cerebral e despertar uma reação. Se ouço o barulho de uma bomba, como ele é intenso e eu o catalogo de um modo específico no meu cérebro, tenho que prestar atenção. Se me for infligido um estímulo nocivo que provoque dor, ele também tem que chamar a atenção. Há um experimento fascinante para explicar a atenção. Imagine uma audiência sentada para assistir a uma aula. Se forem crianças de dois anos, elas não ficam sentadas por muito tempo. Se forem adolescentes, vão ficar um pouco mais. Se forem adultos jovens, mais ainda. Isso tem a ver com o amadurecimento do sistema nervoso.
A capacidade de atenção não nasce pronta, vai se desenvolvendo naturalmente. Se a aula for interessantíssima, essa população de adultos jovens ficará imóvel por manter atenção completa na aula. Mas, à medida que o tempo passa, mesmo que a atenção seja completa, as pessoas começarão a se mexer e a se distrair. Isso acontece porque, quando ficamos imóveis em cima do corpo, ocorre o que chamamos de escara de decúbito. Qualquer paciente que ficar deitado no hospital tem que ser virado, senão surgem escaras. Assim também é conosco: quando sentados ou deitados nos mexemos porque os receptores do nosso corpo começam a enviar sinais ao tálamo avisando que a circulação sanguínea não está adequada.
Mesmo inconscientemente, o nosso tálamo filtra a informação e a envia para o córtex, que toma a decisão de se mover. O tálamo é esse filtro que controla a informação que chega ao sistema nervoso. A única informação que não passa pelo crivo do tálamo para chegar ao córtex é a olfativa. Todas as outras informações sensoriais passam por ele.