As diferentes categorias raciais da humanidade são construções sociais e não têm qualquer respaldo genético. Apesar disso, esse conceito foi integrado à medicina e é usado para o estudo e sistematização das populações. Além disso, a classificação por raças tem sido usada para justificar a ordem social e a dominação de certos grupos por outros. Em termos de material genético ou DNA, os humanos são muito similares, já que o Homo sapiens sapiens , a subespécie à qual o homem moderno pertence, surgiu há ‘apenas’ 150 mil anos, na África. As diferenças morfológicas, como a cor da pele e a textura do cabelo, são ainda mais recentes, resultado das primeiras migrações e representam apenas adaptações às diferentes condições geográficas e climáticas dos diferentes continentes. Portanto, o uso desse parâmetro para avaliações clínicas ou desenvolvimento de medicamentos é equivocado.
 
Essa é a opinião do geneticista Sérgio Danilo Pena, do Departamento de Bioquímica e Imunologia da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), que esteve no Rio de Janeiro em dezembro último para participar do ciclo Vesalius de conferências, na Universidade Federal do Rio de Janeiro.
 
Segundo Pena, o conceito atual de raças foi fortemente influenciado pela classificação taxonômica proposta pelo antropólogo alemão Johann Friedrich Blumenbach (1752-1840), em 1795, na terceira edição de seu livro De Generis Humani Varietate Nativa (Das variedades naturais da humanidade). O antropólogo dividiu a humanidade em cinco ramos raciais: caucasóide, mongolóide, etiópica, americana e malaia. Essa divisão tinha como base a origem geográfica dos povos e considerava os caucasóides, grupo que incluía nativos da Europa, do Oriente Médio, do norte da África e da Índia, como o tipo perfeito, já que Blumenbach acreditava que o berço da humanidade tivessem sido as montanhas do Cáucaso, na Geórgia.
 
No século 19, características morfológicas e cosméticas se tornaram mais importantes para a identificação racial, e as classes criadas por Blumenbach passaram a ser associadas às cores da pele. Os caucasóides se tornaram ‘brancos’ e os africanos, ou etiópicos, ‘negros’. “Biologicamente, não faz sentido falar em raças humanas, já que esses traços respondem por uma parcela pequena do genoma”, reforça o geneticista. “De fato, no fundo, somos todos africanos”, acrescenta.
 
Ancestralidade africana
Para exemplificar a incapacidade de classificações raciais servirem como base para a medicina, Pena cita dois estudos realizados por seu grupo. Os pesquisadores utilizaram seqüências de DNA que variam entre as populações (polimorfismos) para investigar a correlação entre raça e ancestralidade. O primeiro trabalho foi feito com 173 indivíduos de Queixadinha, no município de Caraí, em Minas Gerais. Além de analisar os polimorfismos, dois observadores (um biólogo e um clínico), seguindo a classificação adotada pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), dividiram os participantes em brancos (29), pretos (30) ou pardos (114), baseando-se na cor da pele da porção interna do braço, na cor e textura do cabelo, na forma do nariz e dos lábios e na cor dos olhos.
 
Com os resultados da pesquisa, os cientistas puderam calcular um Índice de Ancestralidade Africana (IAA) para cada indivíduo que participou do estudo. Os dados demonstraram haver uma alta variabilidade de IAA nas três classes de cor, bem como uma enorme sobreposição entre elas, diferentemente do que acontecia quando se analisavam portugueses ou africanos de São Tomé. “Os brancos de Queixadinha não são tão europeus quanto os portugueses, e os pretos não são tão africanos quanto os indivíduos de São Tomé”, explica Pena. O trabalho foi repetido em São Paulo (SP), com 916 pessoas, e obteve resultados similares. Ou seja, a grande miscigenação da população brasileira torna não confiável o uso de características físicas para identificar grupos de cor.
 
“Mesmo em locais onde não há tanta miscigenação, como nos Estados Unidos, esse tipo de classificação não é eficiente”, ressalta o geneticista. Ele conta que há grande variedade genética entre os indivíduos, de modo que não é possível ter certeza sobre respostas terapêuticas supostamente derivadas de características “raciais”. Pena vê com cautela medicamentos que alegam ter eficácia ou efeitos colaterais diferenciados em membros de raças distintas, que é o caso de 15 dos 185 novos remédios introduzidos no mercado norte-americano entre 1995 e 1998. Em 2005, por exemplo, a Federal Drug Adminstration (FDA), órgão de vigilância sanitária dos Estados Unidos, aprovou a comercialização do BiDil, droga para o tratamento de insuficiência cardíaca congestiva em negros.
 
“A atuação dessas drogas se baseia em um determinado perfil farmacogenético. Não há como saber se um indivíduo possui as características necessárias a não ser que se façam os testes genômicos apropriados. Pertencer a uma ‘raça’ não é garantia de sucesso, pois, no consultório, trata-se o paciente de modo individual”, observa o geneticista. Ele vai mais longe e diz que as pesquisas médicas já feitas, baseadas unicamente na avaliação de cor, são de valor discutível. “Todas deveriam ser urgentemente refeitas levando em conta os novos conhecimentos genômicos”, afirma.
 
Além de abolir o conceito de raça da medicina, Pena acredita que se deve ‘desracializar’ a sociedade. Para ele, a política de cotas para o ingresso na universidade deveria ser direcionada para estudantes de escolas públicas, em vez de negros. “Corremos o risco de polarizar ainda mais a questão racial”, conclui.

Fred Furtado 
Ciência Hoje/RJ

 

 

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