Em 1942, o sociólogo russo Pitirim Sorokin (1889-1968) publicou um livro premonitório. Men and Society in Calamity pretendeu convencer seus possíveis leitores da necessidade da criação de um novo campo disciplinar – a calamitologia –, ângulo de observação urgente e mais do que adequado aos tempos que corriam.
O terremoto ocorrido no Haiti em janeiro último repõe de modo brutal a advertência de Sorokin. O silêncio dos meios de comunicação, passadas algumas semanas da tragédia, induz a pensar que a vida, ao fim e ao cabo, voltou a seu curso normal. Talvez seja-nos impossível mesmo imaginar que, ao fim e ao cabo, a vida não retorne a seu curso normal.
Os humanos, a par de sua enorme capacidade de invenção e diversificação cultural, podem ser definidos como animais que criam e seguem regras. A orientação para o ordenamento das coisas sempre esteve associada a um esforço para fazer com que a vida tenha um mínimo de sentido e previsibilidade. Mesmo revolucionários empedernidos e inimigos da tradição cultuam tradições revolucionárias. A própria linguagem, ao fixar uma relação regrada entre nomes e coisas, atesta uma vontade de ordem e de afirmação de sentido. Sempre há, portanto, a expectativa de que temos regras a seguir.
Calamidades significam suspensão abrupta de sistemas de regras e a consequente precipitação no abismo da indeterminação e, no limite, da impossibilidade da própria vida humana. Não surpreende, pois, o fato de que o tema das calamidades tenha tido impacto tão forte na configuração do pensamento moderno. De modo mais direto, algumas das reorientações filosóficas mais significativas, ocorridas no século 18, derivaram precisamente de uma reação intelectual e moral a uma calamidade idêntica à que ocorreu no Haiti.
Terremoto de Lisboa
O terremoto de Lisboa, ocorrido em 1755, para além de seus efeitos devastadores, provocou forte impacto na agenda filosófica europeia. A cidade foi literalmente varrida por uma tripla catástrofe: um tsunami, um terremoto e um incêndio em toda sua parte baixa. Dois terços da cidade foram arrasados e apenas três mil de suas vinte mil casas originais mantiveram-se de pé.
O abalo no campo do pensamento não foi menor. O primeiro pensador a perceber que uma calamidade de tal monta exigia a revisão de formas vetustas e de pensamento foi o francês Voltaire (1694-1778). Em dois textos memoráveis, Poema sobre o desastre de Lisboa (1756) e Cândido (1759), ele voltou-se contra uma concepção de mundo, fundada nas temáticas da teodiceia e do otimismo, presentes em autores de enorme prestígio tais como o filósofo alemão Gottfried Leibniz (1646-1716) e o poeta britânico Alexander Pope (1688-1744).
Trata-se de uma visão de mundo sustentada na crença numa harmonia entre todas as coisas, conectando Deus, natureza, razão humana e o problema do mal. O mundo, tal como existe, é o melhor dos mundos possíveis. Deus não o teria feito de outro modo. Não há lacunas na criação e os eventos do mundo estão conectados por uma necessidade férrea. Mesmo a ocorrência eventual do mal se inscreve nesse desenho concebido pela mão generosa de um criador onipotente.
Para Voltaire, essa perspectiva aparece como inaceitável, já que descura do fato do sofrimento humano, para ele uma realidade irredutível a qualquer justificativa. Com efeito, como compatibilizar o conto de fadas cosmológico, presente na teodiceia e no otimismo, com uma tragédia como a de Lisboa? A ‘demonstração’ de que o mal é um componente necessário da afirmação do melhor dos mundos possíveis e da economia geral do cuidado divino com o mundo não abole o fato do sofrimento humano, e é dessa perspectiva – a do sofrimento – que calamidades devem ser entendidas.
Com Voltaire aprendemos que a natureza é indiferente aos interesses humanos. O melhor dos mundos possíveis não está dado, como algo já inscrito para todo e sempre nas relações entre Deus, humanos e natureza, mas dependerá da capacidade humana de transformação, através da ação prática, do trabalho e da imaginação.
A calamidade do Haiti mais do que repor o tema da indiferença básica da natureza, exige que consideremos a seguinte pergunta: diante de destruição de tal escala, temos repostas capazes de indicar o que fazer para recompor a vida de coletividades assoladas pelo pior dos mundos possíveis?
Renato Lessa
Instituto Universitário de Pesquisas do Rio de Janeiro,
Universidade Candido Mendes
e Universidade Federal Fluminense
rlessa@iuperj.br
Texto publicado na CH 268 (março/2010)