Ao noticiar o resultado de um artigo recente sobre o câncer, a mídia tentou – como se diz no jargão popular – “dourar a pílula”, dando ao público mais esperanças do que os resultados parecem trazer. Se for confirmado, tal trabalho traz uma realidade dura: só um terço de muitos casos de câncer é resultado de predisposição hereditária e fatores ambientais. O restante é obra do acaso.
De certa forma, isso significa que, de agora em diante, um paciente que mantenha uma vida saudável (não fume, não beba, pratique esportes etc.) e receba um diagnóstico de câncer terá uma resposta para a pergunta que praticamente todos se fazem nessa hora: “Por que eu?” e “o que eu fiz de errado?” E a resposta, talvez, seja, respectivamente, “Má sorte” e “Nada”.
Para chegar a tais conclusões, o geneticista Bert Vogelstein e o bioestatístico Cristian Tomasetti, ambos da Universidade Johns Hopkins (EUA), fizeram mais ou menos o seguinte: estabeleceram a quantidade de células-tronco que existe em vários órgãos e tecidos e determinaram quantas vezes, ao longo da vida de uma pessoa, elas se dividem. Células-tronco podem ser vistas como aquelas que, por estarem ainda em um estado ‘primitivo’, podem se diferenciar nas que formam órgãos e tecidos.
Divisão imperfeita
Na divisão celular, cada célula-mãe gera duas células-filhas. O problema é que, nesse processo, há sempre um risco de o material genético não ser reproduzido perfeitamente. Caso essa imperfeição ocorra, o resultado é muitas vezes uma célula defeituosa, cancerosa.
Vogelstein e Tomasetti partiram do seguinte pressuposto: quanto mais células-tronco um tecido tiver, maior será a chance de ele ter câncer. Ao todo, eles examinaram 31 tipos de tecido do corpo humano. Ao confrontarem seus cálculos com as estatísticas de incidência de câncer, chegaram à conclusão de que há uma relação – ou correlação positiva, como se diz no jargão científico – entre o número de divisões de células-tronco e a incidência de câncer em cada um dos tecidos estudados.
Por exemplo, no cólon, o número de divisões de células-tronco, ao longo da vida, pode chegar à casa dos trilhões. Já no duodeno, esse número é cerca de 100 vezes menor. As estatísticas mostram que a incidência de câncer naquela porção do intestino é maior do que na segunda.
Feitos os cálculos e as comparações, a dupla chegou à seguinte conclusão: dois terços dos casos de câncer em vários tecidos são causados por essa incerteza inerente às divisões celulares. Apenas um terço é resultado de genética ou fatores ambientais (tabagismo, alcoolismo, radiação, alimentação, exposição a substâncias cancerígenas etc.). O artigo está em Science (02/01/15).
Preço a se pagar
Eis uma lista dos nove cânceres estudados que, segundo o artigo, são causados tanto por ‘má sorte’ quanto por fatores ambientais e predisposição genética: pele (sol), cabeça e pescoço (vírus), tireoide folicular (radiação), pulmão (tabagismo), fígado tipo HCV (vírus), duodeno tipo FAP (gene), colorretal adenocarcinona (carne vermelha), Lynch (gene) e colorretal FAP (gene). Os outros 22 estudados são resultado da imperfeição nas divisões celulares.
O bioestatístico Thomas Lumley, da Universidade de Auckland (Nova Zelândia), discorda da análise estatística de Vogelstein e Tomasetti. Para ele, – em texto em inglês – “fazendo o cálculo matematicamente correto, ele dá cerca de um terço [causado pela ‘má sorte’]; ou até valores menores”.
A Agência Internacional para Pesquisa do Câncer (Iarc, na sigla em inglês), braço da Organização Mundial da Saúde (OMS), divulgou em 14/1/15 um comunicado oficial no qual contesta as conclusões do estudo. Segundo a Iarc, a pesquisa contradiz toda a ampla evidência epidemiológica acumulada das últimas décadas e apresenta limitações metodológicas e análise tendenciosa. Em entrevista à CH, Tomasetti responde: “Nos próximos dias, enviaremos [para publicação] um artigo que irá mostrar que nossa análise, na verdade, está correta”.
Se confirmados, esses resultados – que dependem bastante da qualidade dos dados usados na análise –, de certo modo, põem fim ao sonho de que a ciência, um dia, poderá varrer o câncer da face da Terra. Tanto hoje quanto no futuro, a má sorte estará rondando os humanos e outros animais suscetíveis. Nas palavras de um especialista que comentou o artigo, é o preço que se paga por ser um animal cujas células se dividem todo o instante.
O lado positivo dos resultados é que essa dura realidade talvez ajude a criar novas estratégias de prevenção e – ainda mais importante – de conscientização de que exames periódicos e a busca por ajuda médica é ainda mais importante. Afinal, mesmo um câncer que tenha surgido por ‘má sorte’ tem mais chances de cura, caso seja diagnosticado precocemente.
Cássio Leite Vieira
Ciência Hoje/ RJ
Texto originalmente publicado na CH 322 (janeiro/fevereiro 2015). Clique aqui para acessar uma versão parcial da revista.