Células embrionários sem uso de embriões?

A proteína Tra1-60, característica das células-tronco embrionárias humanas, está destacada (pontos vermelhos) na imagem. Quando células adultas da pele foram fusionadas com células-tronco embrionárias, as células híbridas resultantes (não mostradas na imagem) expressaram essa proteína, sugerindo que elas foram reprogramadas e convertidas em células embrionárias (foto: Chad A. Cowan / HHMI at Harvard University / Science )
Pesquisadores norte-americanos desenvolveram nova técnica com a qual foi possível reprogramar células adultas e dotá-las de comportamento e características das células-tronco embrionárias, que têm a capacidade de formar qualquer tecido do corpo humano. Caso se mostre viável, o método poderá levar à conversão de células normais em embrionárias sem que para isso sejam usados embriões humanos – o que tem sido motivo de acalorados debates éticos. Mas, apesar do entusiasmo com que esse trabalho foi acolhido pela mídia, ainda será preciso desvendar vários mecanismos por trás dessa reprogramação, antes que esses resultados venham a ser usados em terapias celulares. O artigo está em Science (26/08/05, pp. 1.369-1.373).
 
Depois da fecundação, o óvulo inicia um programa perfeitamente definido no tempo e no espaço que leva à formação do feto e do jovem organismo. As divisões celulares subseqüentes e a formação de tecidos geram as células diferenciadas (popularmente denominadas adultas). Para manter a ordem funcional do organismo, cada célula é destinada a exercer um conjunto de funções específicas, inerentes ao tecido no qual reside, e não desempenhar as funções alheias.
 
Ao longo do desenvolvimento, esses programas são cada vez mais restritivos e rigorosos. Os conjuntos de genes que não deverão ser utilizados nessas células são condensados e segregados. Pensou-se que essas restrições eram irreversíveis. Entretanto, a clonagem de animais usando um núcleo de célula adulta introduzido em um óvulo sem núcleo (enucleado) mostrou a possibilidade da reprogramação e anulação dessas restrições, sob influência do citoplasma de óvulo. Na verdade, nada de extraordinário, já que o óvulo reprograma o núcleo do espermatozóide, inativo e extremamente condensado, o qual se abre e se ativa depois da fecundação.
 
No início do desenvolvimento embrionário, as células se dividem rapidamente e geram uma massa celular primordial. Estando na fase anterior à diferenciação, essa massa pode ser usada para estabelecer as linhagens de ‘células-tronco embrionárias’ (CTE), que guardam ainda a capacidade de formar todos os tecidos. Anteriores também à programação temporal e à definição da longevidade do organismo, essas células são imortais. Ambas as propriedades são promissoras, pois as CTE podem, teoricamente, gerar uma quantidade ilimitada de tecidos diferenciados, utilizáveis em procedimentos terapêuticos.
 
As CTE também são perigosas, pois a imortalidade associada com a expressão ilícita de genes é característica de células cancerosas. As células embrionárias geram uma forma agressiva de câncer, os teratocarcinomas, com crescimento ilimitado e diferenciação caótica de fragmentos teciduais em uma massa monstruosa – theratos , em grego, monstro –, contendo uma mistura de pele, vísceras, dentes, cabelos, olhos, ossos etc.
 
Considera-se tradicionalmente que, em um procedimento de clonagem, as proteínas presentes no citoplasma do óvulo e codificadas pelo seu genoma são necessárias e suficientes para anular e zerar o programa de diferenciação do núcleo da célula adulta. A criação de um novo ser seria, em seguida, executada no processo normal que leva à criação do embrião.
 
Entretanto, estudo recém-publicado por pesquisadores do Instituto Médico Howard Hughes, da Universidade Harvard, em Cambridge (Estados Unidos), mostra que o processo é mais complexo. Fusionadas, as células adultas e as CTE geraram células híbridas contendo os dois genomas completos, originalmente diferentes em sua função. Duas linhagens celulares estáveis foram assim obtidas. Em ambas, os dois genomas passaram a expressar o perfil de células não diferenciadas, ou seja, embrionárias.
 
Portanto, o genoma das células embrionárias se mostrou dominante, capaz de impedir ou apagar todos os programas restritivos de diferenciação celular. Trata-se de uma ação competitiva dos genomas e não de uma simples descondensação e ativação do DNA, como ocorre no caso do espermatozóide, já citado. O mecanismo molecular por trás desse processo permanece desconhecido, mas sabemos que a reprogramação das duas linhagens híbridas poderia ser mediada por um número limitado de moléculas de RNA (ácido ribonucléico) ou de proteínas regulatórias, cuja função é determinar como os genes irão atuar e se organizar em um indivíduo.
 
Embora não discutidos no estudo, a identificação e o conhecimento dessas moléculas poderá permitir sua síntese (fabricação em laboratório). Quando introduzidas em uma célula normal adulta, elas poderiam convertê-la diretamente em uma célula embrionária, sem manipulação maior do genoma e sem o uso – sujeito ainda às questões éticas – de células-tronco obtidas a partir de embriões humanos.
 
Essa proposta poderia ser relevante para o uso de células embrionárias em terapias celulares. As células derivadas de um embrião têm um perfil próprio de proteínas – tecnicamente, diz-se que têm histocompatibilidade própria –, o que faz com que, quando usadas em um processo de terapia celular, provoquem rejeição, requerendo o uso de imunossupressores (drogas que evitam a rejeição) por tempo prolongado.
 
Uma das soluções é a clonagem terapêutica, na qual um clone é gerado usando-se um núcleo de célula adulta do próprio paciente, introduzido em um óvulo enucleado. As CTE assim obtidas não causarão a rejeição no corpo do paciente, pois têm o genoma dele. Embora a exeqüibilidade desse procedimento fosse demonstrada recentemente por pesquisadores da Coréia do Sul, é impossível avaliar até onde o genoma assim manipulado ainda preserva sua integridade funcional. Portanto, a introdução dessas células no corpo do paciente é associada a um risco incalculável.
 
A proposta do grupo da Universidade Harvard seria claramente mais branda que uma clonagem terapêutica. Entretanto, a conversão da expressão do genoma foi observada somente em células híbridas, que continham os dois genomas completos e ativos e que, portanto, não poderão ser introduzidas no corpo humano.
 
A extensa experiência de manipulação de hibridomas (células normais produtoras de anticorpos fusionadas com células tumorais) nos ensina que a eliminação do conjunto completo do material genético pertencente a um único núcleo original da célula híbrida, como sugerida pelo grupo de Harvard, não é exeqüível. Também a questão de teratocarcinomas não foi resolvida, pois as células híbridas obtidas formaram, de modo sistemático, esses tumores quando injetadas em corpo de camundongos.
 

Embora os resultados relatados representem um novo passo na compreensão da biologia das células embrionárias, seu uso em terapias celulares está ainda distante.

Radovan Borojevic
Instituto de Ciências Biomédicas,
Universidade Federal do Rio de Janeiro

 

 

 

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