Atrizes de teatro e de cinema são diferentes. Uma avaliação sucinta dos mais importantes aspectos dessa diferença é essencial para entendermos o desempenho da atriz brasileira Cacilda Becker, apontado como extraordinário.
O objetivo da análise é duplo: entender as razões que alçaram a competência dessa atriz ao nível extremo e relacionar sua elogiada atuação nos palcos à renovação que ocorria no teatro brasileiro e ao prestígio conquistado também por outras intérpretes teatrais ao longo dos decênios de 1940 e 1950.
Para os aficionados pelas artes da representação, a sueca Greta Garbo (1905-1990) e a francesa Sarah Bernhardt (1844-1923) são nomes obrigatórios. A primeira pelo glamour que infundiu à ‘sétima arte’. A segunda pelo que fez nos palcos e fora deles.
Divas cuja notoriedade é inseparável dos meios com que se expressaram e das personagens que interpretaram. A primeira ganhou fama no cinema, a segunda fez nome no teatro. Disso decorrem implicações intrigantes, como a diferença entre as personagens teatrais e cinematográficas.
Greta Garbo marcou o imaginário de milhões de fãs em virtude de sua ‘inacessibilidade’ quase mítica. Ao contrário dos grandes atores e atrizes de teatro, que oferecem o melhor de si quando interpretam personagens marcantes da dramaturgia ocidental, Garbo, embora tenha ‘emprestado’ seu corpo para inúmeras personagens femininas, interpretou antes de tudo a si mesma, ou melhor, à persona que se construiu em torno dela.
Por isso, o que persiste dela não é propriamente a atriz, “mas essa personagem de ficção cujas raízes sociológicas são muito mais poderosas do que a pura emanação dramática”, como mostrou o crítico de cinema Paulo Emílio Salles Gomes (1916-1977) no livro A personagem de ficção.
A menção a Greta Garbo visa realçar uma das mais notáveis diferenças entre o cinema e o teatro quando o assunto é a personagem interpretada. Se em ambos as personagens são ‘encarnadas’ na pessoa e no corpo dos intérpretes, ocorre que, no cinema e nas palavras de Paulo Emílio Gomes, “os mais típicos atores e atrizes são sempre sensivelmente iguais a si mesmos”, pois “em última análise simbolizam e exprimem um sentimento coletivo”.
Além disso, os filmes podem ser vistos novamente, o que assegura uma espécie de imortalidade aos intérpretes. No teatro, ao contrário, atores e atrizes estão sujeitos aos ‘infortúnios’ da temporalidade. “Quando um ator para o ato teatral, nada fica, a não ser a memória de quem o viu”, na opinião daquela que é considerada a maior atriz viva do teatro brasileiro, Fernanda Montenegro.
O fato de serem retratados na pintura e de receberem um registro visual preciso a partir da invenção da fotografia não minimiza as imposições da fugacidade a que os atores e as atrizes de teatro estão sujeitos por praticarem uma arte que deixa poucas provas materiais de sua existência.
Enquanto o texto teatral pode ser consultado séculos depois da primeira encenação, uma montagem específica só sobrevive no testemunho dos que estiveram presentes, nos programas impressos, nas críticas publicadas. Mesmo quando filmada integralmente, ela torna-se outra coisa.
Parte importante do ‘mistério’ e da ‘magia’ – para usar uma terminologia nativa do teatro – se perde ao ser reproduzida em filme, pois este não é capaz de transmitir aquilo que acontece ao vivo e que depende essencialmente da capacidade de interpretação dos atores e do modo como isso é captado pelo público.
Um ótimo exemplo nesse sentido está na avaliação que o diretor belga radicado no Brasil, Maurice Vaneau (1926-2007), fez sobre o impacto e a força expressiva de uma das mais emblemáticas atrizes do teatro brasileiro, Cacilda Becker (1921-1969).
Comparando-a com as grandes atrizes do mundo, Vaneau enfatiza: “Ela tinha um talento de dimensão extraordinária. Quando estava no palco, ocupava-o por inteiro, projetando para toda a plateia (não somente para as duas primeiras fileiras) todos os sentimentos que precisariam ser traduzidos a partir da personagem que estava representando […]. Cacilda tinha esse fluido imenso, emanando ondas, circulando ondas do palco para a plateia, da plateia para o palco e vice-versa, num sistema que é básico para o teatro, porque esse fluido é capaz de tocar o intelecto, o coração, o estômago, os nervos, as artérias e o sangue do espectador”.
Transitando por personagens muito distintas, Cacilda triunfou porque elevou sua competência como atriz a um nível excepcional, em um contexto muito particular de renovação do teatro brasileiro.
Ela pertence ao time seleto das grandes atrizes que, fazendo de seus corpos o suporte privilegiado para a reconstrução de experiências alheias, dominam as convenções teatrais a ponto de burlar constrangimentos sociais de classe, gênero e idade, infundindo às personagens uma pletora de significados novos e inesperados.
Eis aí a grande diferença entre a atriz de cinema e a de teatro: enquanto a primeira é tida como ‘grande’ quando se revela sempre igual a si mesma, no teatro a notoriedade nasce da capacidade de encarnar as mais diversas personagens.
Heloisa Pontes
Departamento de Antropologia,
Universidade Estadual de Campinas