Pinguço, pau-d’água, ébrio, chumbado, beberrão. A língua portuguesa é riquíssima em adjetivos para designar aquele amigo que é, digamos, dado aos prazeres do álcool. Bebaço, bebum, biriteiro, borracho, caneado, xumbregado e por aí vai. Dá até para fazer poesia. Mas, poucos sabem, por trás da cachaça também há ciência, e os adeptos da cultura etílica devem se animar com a novidade: pesquisadores da Universidade Estadual Paulista (Unesp), em Araraquara, desenvolveram uma nova bebida alcoólica que promete conquistar paladares – é a aguardente de licor de laranja.

Após uma década de estudos, o químico João Bosco Faria, do Centro de Pesquisa da Cachaça, da Unesp, mostrou que é perfeitamente viável elaborar uma bebida aproveitando rejeitos da produção de suco de laranja (o bagaço da fruta) e de cerveja (a levedura). “São duas indústrias nacionais com grande volume de produção; e o aproveitamento desses descartes é vantajoso do ponto de vista mercadológico e elogiável do ponto de vista ambiental”, diz Faria.

A receita do novo produto é segredo – devidamente patenteado pela Unesp. Mas, em linhas gerais, não foge muito do convencional. Primeiro, o bagaço é prensado. Dele obtém-se um líquido, tecnicamente chamado de licor de laranja, do qual será feita a aguardente. Esse licor é armazenado em tanques metálicos e, em seguida, fermentado com as leveduras reaproveitadas da indústria cervejeira. “A levedura é o microrganismo que transforma o açúcar em álcool”, explica o químico.

“Se pudéssemos aproveitar todo o volume de rejeito das indústrias de suco e de cerveja, poderíamos quase dobrar a produção nacional de aguardente”

O próximo passo é a destilação. E, na sequência, a bebida é envelhecida em tonéis de carvalho. “Para aguardentes em geral, o período mínimo de envelhecimento deve ser de dois a três anos”, revela. “O produto envelhecido fica mais encorpado, com uma textura diferenciada, pois a madeira retém algumas substâncias do destilado e libera outras de sua estrutura, favorecendo a formação de compostos que dão sabor à bebida.”

Mas seria mesmo a tal aguardente, feita com resíduos industriais, saborosa? “Sem dúvida”, garante Faria. Testes sensoriais conduzidos ao longo dos últimos anos confirmam sua aprovação. A ideia é que tanto pequenos produtores quanto grandes indústrias possam se beneficiar do processo desenvolvido na Unesp.

O químico estima em três anos o tempo para que o novo goró chegue ao mercado nacional. E ambiciona: “É crescente a demanda por exportações”. A propósito, o Brasil produz hoje cerca de 1,3 bilhão de litros anuais de cachaça. “Não mais que 1% é exportado; ou seja, bebemos quase tudo por aqui mesmo”, brinca Faria. “Se pudéssemos aproveitar todo o volume de rejeito das indústrias de suco e de cerveja, poderíamos quase dobrar a produção nacional de aguardente”, estima o pesquisador.

Água que passarinho não bebe
Especialistas advertem que não se deve chamar de ‘cachaça’ qualquer bebida alcoólica similar. Segundo os que zelam pelo rigor do jargão etílico, ‘cachaça’ é designação exclusiva do destilado de cana-de-açúcar produzido no Brasil. Todo o resto é aguardente. Algo similar ocorre com o termo ‘champanhe’, que, apesar de ter virado denominação genérica, refere-se em particular a uma bebida produzida na região homônima, no norte da França.
Na elaboração de bebidas alcoólicas, são duas as principais etapas: fermentação e destilação. Bebidas fermentadas – como vinho e cerveja – geralmente têm teores alcoólicos entre 5% e 12%. E a maioria das bebidas destiladas – como cachaça, vodca, uísque e rum – tem teores alcoólicos em torno de 40%.
Aos não iniciados, pode-se dizer que fermentação é o processo no qual o açúcar transforma-se em álcool (aliás, por isso o escritor estadunidense David Rains certa vez gracejou: “a fermentação foi a maior invenção do ser humano depois do fogo”). E destilação é, grosso modo, um método usado para tornar o produto mais concentrado. Nos alambiques, o álcool e os demais compostos voláteis são separados do líquido fermentado. E, na sequência, são reconduzidos ao estado líquido. Resultado: uma bebida mais concentrada e com maior teor alcoólico. “Alguns drinques são destilados uma única vez; mas outros requerem duas destilações”, diz Faria.
É o caso da nova aguardente de licor de laranja da Unesp, que é bidestilada. Uma garrafa dessa nova bebida deverá custar em torno de R$ 20 – podendo atingir valores bem mais ‘sofisticados’ no exterior.

Henrique Kugler
Ciência Hoje/ RJ

Texto originalmente publicado na CH 306 (agosto de 2013).

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