A influência intelectual dos Ensaios de Michel de Montaigne (1533-1592) no amplo círculo de seus leitores é difusa e imponderável, porém mais facilmente visível nas cogitações de cunho ensaístico que sempre suscitaram. Dentre os poucos estudos críticos mais sistemáticos e perenes encontra-se a monografia clássica de Hugo Friedrich (1904-1978), Montaigne, que, como diz seu autor, pretendeu suprir uma lacuna existente na interpretação global dos Ensaios.
Buscando ir além do ainda insuperado estudo de Pierre Villey sobre as fontes e o desenvolvimento dessa obra – cuja solidez, segundo Friedrich, concerne principalmente ao que esclarece sobre seus aspectos ‘formais’ –, bem como de outros estudos fecundos sobre aspectos isolados, Friedrich ofereceu uma imagem do “conjunto do seu espírito”, capaz de posicioná-la na história das ideias e, particularmente, na tradição dos ‘moralistas’ franceses.
Analisando o estudo descritivo que Montaigne, com seu autorretrato, buscou fazer da variedade contraditória das ações humanas, pretendia-se apresentar uma leitura rigorosa capaz de “abraçar sem sufocar” a reflexão intrinsecamente subjetiva dos Ensaios.
Já na descrição do projeto de Friedrich se exibe a historicidade da interpretação, produto de uma cultura humanista hoje certamente mais rara. Aluno do romanista E. R. Curtius e contemporâneo de Erich Auerbach e Leo Spitzer, seu vasto e diversificado trabalho (menos desconhecido no Brasil pela tradução de sua Estrutura da lírica moderna) se inscreveu no horizonte de uma mesma defesa intelectual do legado cultural ocidental, contra o que Curtius denominava a “catástrofe germânica” cristalizada pelo nacionalismo e pela opressão cultural nazi.
E, assim como Auerbach e Stefan Zweig, Friedrich encontra nos Ensaios a ocasião de apontar a liberdade com que Montaigne observa a natureza adversa do século das Guerras de Religião retirado em um recesso de si mesmo.
Entretanto, como nota Richard Regosin, enquanto Auerbach e Zweig, ao destacarem este aspecto, nele traduzem seu próprio exílio pessoal, Hugo Friedrich, lecionando na Universidade de Freiburg im Breisgau durante a guerra, abordou o ‘conservadorismo’ de Montaigne pelo viés de uma oposição entre teoria e prática que facultava tolerância, talvez excessiva, com o brutal estado de coisas.
Deixando de lado os detalhes (como o fato de que Friedrich dá igual ênfase à coragem com que Montaigne se opôs aos tribunais da Inquisição), importa evitar um historicismo redutor, incapaz de detectar o que na obra tem valor próprio – e este recai principalmente no padrão de rigor da análise proposta, que se estende à compreensão do seu alcance próprio.
Por esse ângulo, ela pode ser comparada àquela que Friedrich ofereceu da lírica moderna, na qual buscara mostrar que a poesia moderna possui poder expressivo comparável ao de formas culturais mais consagradas. Pois é particularmente difícil evitar uma leitura distorcida ou simplificadora da obra Montaigne, seja em virtude do limite dos horizontes em que se lê ou da falsa aparência de superficialidade que a prosa franca e pessoal dos Ensaios pode gerar – “como se uma aura de leveza, obtida por uma grande arte e certa superioridade intelectual, devesse necessariamente comportar uma leveza de fundo”, escreve Friedrich.
Assim, para decifrar o teor intelectual próprio dos Ensaios, importa apreender tanto a consciência estilística do autor (pela qual, segundo Friedrich, Montaigne confere às formas canônicas da retórica pessoal um significado novo) quanto sua consciência filosófica. E aqui cumpre lembrar que, para além da sua própria contingência histórica, o estudo de Friedrich teve efetivamente um papel relevante em reavivar o interesse filosófico pela obra de Montaigne, então adormecido, e isso certamente depende da consistência do retrato que obteve.
Para além das respostas que dá às questões tradicionais dos Ensaios (que ainda hoje estão longe de serem obsoletas), é necessário enfatizar a excelência da sua erudição, que, precisa, paciente e minuciosa, pondera o significado de diversos aspectos da obra.
Seja ao comparar Montaigne com os demais leitores renascentistas da cultura humanista, seja ao posicioná-lo ante o debate medieval sobre a ‘dignidade humana’ (dignitas hominis), Friedrich nos conduz como um guia seguro pela solidez de suas ponderações, e mesmo suas notas de passagem sobre temas usuais recompensam o leitor atento.
O mesmo vale para o seu ‘conservadorismo’ ou para o que diz sobre o “famoso ceticismo” de Montaigne, que “[…] recupera o velho sentido do termo: é um olhar atento pelo qual o mundo e os homens, longe de se empobrecer, se enriquecem, um ceticismo clarividente que religiosamente respeita a superioridade do aparecer das coisas sobre sua interpretação sempre imperfeita”.
Friedrich não almeja aqui se pronunciar como filósofo profissional, mas há todo um frutífero programa de pesquisa depositado nesta e em outras passagens, que cada leitor haverá de recuperar segundo as chaves de que dispõe.
Eis por que a riqueza única de Montaigne de Hugo Friedrich reside antes na sua dimensão transistórica, pela qual se pode reconhecer no intérprete, mais vivamente do que de costume, um exemplar daquele leitor que o escritor francês exige para sua obra, o portador de um “juízo bem formado” no sentido mais próprio da expressão.
Luiz Eva
Departamento de Filosofia
Universidade Federal do Paraná