As pequenas centrais hidrelétricas (PCHs) são consideradas mais limpas e sustentáveis e, por isso, muitas são construídas em sequência em um mesmo rio ou bacia. O risco de dano socioambiental, no entanto, foi reconhecido oficialmente em agosto último.

A juíza Lílian Maciel Santos, da 2ª Vara da Fazenda Pública Estadual de Belo Horizonte, determinou a suspensão de todos os procedimentos de licenciamento ambiental e das licenças já concedidas a sete PCHs que seriam construídas na bacia do rio Santo Antônio – uma sub-bacia do rio Doce –, em Minas Gerais.

A decisão da juíza trouxe à ribalta uma questão que tem mobilizado em¬presas e habitantes de diversos municípios do estado: as PCHs são “um dos principais focos de atuação da Agência Nacional de Energia Elétrica (Aneel) no que se refere ao aumento da oferta de energia elétrica no Brasil”, nas palavras do próprio órgão público.

Seu licenciamento ambiental mais simples, porém, ignora a possibilidade de um impacto conjunto de duas ou mais PCHs construídas em um mesmo rio ou bacia. Perda de biodiversidade, invasão e expansão de espécies exóticas, remoção de população e inviabilidade dos rios para outros usos são alguns dos principais impactos mencionados por biólogos e ambientalistas.

Em linhas gerais, uma pequena central hidrelétrica é uma usina com potência de 1 MW até 30 MW, e reservatório com área igual ou inferior a 3 km². Em alguns casos, no entanto, os reservatórios podem chegar a ter até 13 km² de extensão, seguindo uma equação proposta na Resolução n° 652 da Aneel, de 9 de dezembro de 2003, que leva em consideração a potência e as diferenças entre os níveis de água a jusante (abaixo) e a montante (acima) da barragem.

Barragem da PCH Funil
Barragem da pequena central hidrelétrica (PCH) Funil, em construção em 2007, em MG. Em agosto de 2011, a justiça determinou a suspensão de todos os procedimentos de licenciamento ambiental e das licenças já concedidas a sete PCHs que seriam construídas no estado. (foto: Isabela Lopes Cançado)

Definição em xeque

Tais critérios de definição de PCH, que levam em conta apenas a potência e a área do reservatório, diferem bastante de conceituações internacionais para pequenas centrais hidrelétricas.

Segundo a Comissão Internacional de Grandes Barragens (Icold, na sigla em inglês), da qual participam países como Argentina, França e Coreia, uma pequena central hidrelétrica é assim definida a partir da altura de suas barragens e o volume de seus reservatórios.

Ou seja: são consideradas pequenas as estruturas com altura abaixo de 15 m ou entre 5 e 15 m cujos reservatórios tenham capacidade de acumulação inferior a 3 milhões de metros cúbicos. Para o biólogo Morel Queiroz Ribeiro, analista ambiental da Fundação Estadual do Meio Ambiente de Minas Gerais (Feam/MG), os critérios – e sua flexibilidade – propostos pela Aneel causam o enquadramento de empreendimentos maiores e mais complexos como PCHs.

Os critérios de definição de PCH usados no Brasil – potência e área do reservatório – diferem bastante de conceituações internacionais para pequenas centrais hidrelétricas

Essas ‘pequenas’ centrais hidrelétricas teriam, “por consequência, maior capacidade de alteração dos regimes fluviais dos cursos d’água”, escreveu Ribeiro em artigo apresentado no 3° Encontro Latino-americano de Ciências Sociais e Represas, realizado em dezembro de 2010 no Pará.

Ao mesmo tempo, os incentivos do governo para que se invista nesse tipo de energia são intensos: quem investiu em PCHs até 2003 não precisa pagar taxas pelo uso da rede de transmissão e distribuição; nenhuma PCH precisa remunerar municípios e estados pelo uso dos recursos hídricos; empreendedores que obtiveram a outorga de uma PCH até o final de 2010 têm garantida a compra de toda a energia que produzirem pela Eletrobras por 20 anos; e o Banco Nacional do Desenvolvimento (BNDES) já investiu bilhões de reais em empreendimentos do tipo.

O licenciamento ambiental também é mais simples para as PCHs e, em alguns estados, sequer são necessários o Estudo Prévio de Impacto Ambiental (EIA) e o Relatório de Impacto Ambiental (Rima). Feitos isoladamente, sem levar em conta outras usinas hidrelétricas no mesmo rio ou bacia, os licenciamentos ignoram o conjunto dos impactos socioambientais dos empreendimentos.

Um caso exemplar

Em todo o Brasil, há 409 pequenas centrais hidrelétricas em funcionamento. Dessas, cerca de 20% (121) estão situadas no estado de Minas Gerais. Das empresas envolvidas, ao menos 15 realizam autoprodução de energia – ou seja, a energia produzida em suas PCHs é usada para as atividades da própria empresa.

Mas as construções, outorgas e licenciamentos não se desenrolam sem problemas no estado. As populações de muitos municípios afetados manifestam-se contra, o que pode ser observado nas audiências públicas de consulta à população.

Um desses casos é justamente o da bacia do Santo Antônio, onde a juíza Lílian Maciel Santos determinou a suspensão dos processos de licenciamento ambiental. “Esse é um caso paradigmático”, afirma a bióloga Andrea Zhouri, do Grupo de Estudos de Temáticas Ambientais da Universidade Federal de Minas Gerais (Gesta-UFMG). O motivo: originalmente, havia nada menos que 15 projetos de hidrelétricas na bacia – além das duas PCHs e duas usinas hidrelétricas de energia (UHEs) em operação.

A bacia hidrográfica de Santo Antônio abrange 29 municípios, que reúnem cerca de 182 mil pessoas, segundo o IBGE, em torno do rio homônimo, seus afluentes principais – rio Preto do Itambé, Peixe, Guanhães e Tanque – e afluentes menores.

O rio que dá nome à bacia nasce na serra do Espinhaço e percorre 280 km até desaguar no rio Doce. Uma parte da área foi considerada “de importância biológica especial”, categoria máxima para conservação da biodiversidade no estado, com quatro espécies de peixes ameaçadas de extinção (andirá, pirapitinga, surubim do rio Doce e um tipo de timburé), que vivem principalmente no trecho médio da bacia.

Bacia hidrelétrica do rio Doce
Aproveitamentos energéticos em operação e outorgados na bacia hidrelétrica do rio Doce. Até a suspensão dos licenciamentos, havia projetos de outras PCHs na mesma região. (mapa: reprodução)

Os dados foram obtidos durante a tese de doutorado do biólogo Fábio Vieira na UFMG, ao estudar a importância desse trecho do rio Santo Antonio para a biodiversidade de peixes na região. “Cerca de 70% das espécies de peixes da bacia do rio Doce vivem em 50% dela – acima das UHE de Salto Grande”, explica Vieira.

“Ou seja, com a renúncia ao aproveitamento de um potencial energético praticamente insignificante, e com a reserva dessa área para a sobrevivência dos peixes, mantém-se a maior parte das espécies do rio Doce, das quais uma vive somente nesse local.”

Vieira refere-se à Henochilus wheatlandii, conhecida como andirá. Duas outras espécies têm as maiores populações conhecidas também nessa área: Leporinus thayeri, conhecida popularmente como timburé, e Brycon opalinus, chamado localmente de pirapitinga.

O grande risco das barragens para a biodiversidade de peixes da região, explica Vieira, está no fato de elas alterarem definitivamente os hábitats necessários para essas espécies completarem seus ciclos de vida – impacto que não pode ser contornado com as tecnologias disponíveis hoje.

A suspensão dos licenciamentos e o requerimento de uma análise ambiental integrada demonstram que toda a dinâmica dos processos de licenciamento de PCHs está sendo reconsiderada

O biólogo Jorge Dergam, da Universidade Federal de Viçosa, faz coro e complementa: “O processo de assoreamento do Santo Antônio, já intenso, tende a aumentar se parte da cobertura vegetal for eliminada com a construção de barragens seriadas. A intensificação do assoreamento certamente diminuirá a vida útil das próprias barragens”.

A suspensão dos licenciamentos e o requerimento de uma análise ambiental integrada, para Vieira e Dergam, demonstram que toda a dinâmica dos processos de licenciamento de PCHs está sendo reconsiderada.

Até 2006, todos os licenciamentos eram feitos na própria Fundação Estadual do Meio Ambiente (Feam) de Minas Gerais, quando foram criadas as superintendências regionais. “Nessas superintendências, os funcionários não têm preparo técnico para avaliar os projetos, que normalmente são aprovados, a não ser que haja alguma falha gritante no EIA/Rima”, alfineta Dergam.

Questionada a respeito do tema, a Feam não quis dar entrevistas até o fechamento desta edição.

Isabela Fraga
Ciência Hoje/ RJ

Texto originalmente publicado na CH 288 (dezembro de 2011).

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