De ‘Sahel’ a ‘Genesis’ – A recriação de Sebastião Salgado

Rio de Janeiro

Até pouco tempo atrás, poucas pessoas que observassem as imagens do livro Genesis iriam identificá-las como pertencentes ao fotógrafo brasileiro Sebastião Salgado. Salgado é reconhecido mundialmente por suas fotos ao mesmo tempo belas e dramáticas que abordam temas ligados às questões sociais, tais como o trabalho, a migração, a infância e a guerra. Ao longo dos anos, nos acostumamos com suas imagens fortes, que sempre nos prenderam o olhar, convencendo-nos a encarar cenas cheias de sofrimento que, muitas vezes, gostaríamos de esquecer. Ao combinar beleza estética e crítica social, sua intenção declarada tem sido a de denunciar os efeitos perversos da globalização e estimular a reação de pessoas e governos a essa conjuntura.

A figura de uma mulher desnutrida e desidratada que espera sua vez num hospital de Gourma Rharous, Mali, é bom exemplo desse tipo de imagem pela qual Salgado é conhecido. Essa foto faz parte do seu primeiro livro, Sahel, l’homme en détresse (Sahel: o homem em agonia), de 1986, sobre as consequências da seca nessa região africana ao sul do Saara.

Podemos perceber nessa fotografia muitas características que vão ser encontradas nas suas obras posteriores: a opção por trabalhar com filme preto e branco, o uso da contraluz para tornar mais dramática a composição e a referência à história da arte – nesse caso, o diálogo com o trabalho da artista alemã Käthe Kollwitz (1867-1945), especialmente as obras Lament, Killed in action e Poverty.

Apenas no que se refere ao enquadramento, essa imagem difere das outras, que se tornaram habituais no seu portfólio, mas, nesse caso, a opção pelo close up, afinada com a escolha de Kollwitz em Lament, se justifica pela intensificação da dor da mulher que essa proximidade produz.

Durante boa parte da sua carreira, a opção pelo registro estético do sofrimento dos mais necessitados tem gerado inúmeras censuras à sua obra por críticos influentes como Susan Sontag e Jean-François Chevrier

Durante boa parte da sua carreira, a opção pelo registro estético do sofrimento dos mais necessitados tem gerado inúmeras censuras à sua obra por críticos influentes como Susan Sontag (para quem suas imagens nem sempre ajudam na compreensão política dos acontecimentos focalizados) e Jean-François Chevrier (que questiona o que chama de “retórica da compaixão”).

Neste último projeto, entretanto, essa postura parece ter mudado significativamente. Salgado decidiu reinventar-se para continuar seu trabalho (e sua vida), passando a se interessar também pela causa ecológica, deixando de lado o anterior enfoque trágico em favor de um estilo mais épico.

Essa mudança começou a se desenhar no final da década de 1990, quando o intenso contato com os problemas sociais, ao realizar suas fotos, o levou à beira de uma depressão. Coincidiu de, nesse momento, Salgado voltar à sua terra natal, Aimorés (MG), para cuidar da fazenda dos seus pais e ali encontrar devastada a terra em que viveu sua infância – esse fato, como ele conta, contribuiu para agravar seu estado psicológico.

Com a ajuda de sua mulher, Lélia Wanick, conseguiu reagir a esses revezes, fundando o Instituto Terra, por meio do qual recuperaram a vida nesse lugar. Essa experiência deu novo ânimo a Salgado e lhe despertou o interesse por fotografar paisagens, animais e comunidades que ainda não haviam sofrido as consequências negativas da sociedade de consumo – ali começava o projeto Genesis.

Início da Terra

A palavra genesis vem do grego e significa ‘origem’, ‘nascimento’, ‘criação’, e nomeia o primeiro livro da Bíblia. Segundo Salgado, a escolha desse nome não está ligada ao tema bíblico, mas ao início da Terra na “versão científica”, quando ela teria sido moldada por erupções e terremotos que acabaram por dar origem à vida. Apesar da sua declaração, é impossível não estabelecer ligações do seu novo trabalho com esse momento da narrativa judaico-cristã, especialmente no trecho anterior à aparição do primeiro homem, quando a Terra era um paraíso – literalmente.

A intenção de Salgado em Genesis foi revelar o que ainda havia de “puro” no planeta

Em 2004, Salgado partiu em busca desses lugares em que a presença do homem ainda não era sentida. Sua intenção foi revelar o que ainda havia de “puro” no planeta, pretendendo assim despertar a consciência das pessoas para a necessidade de proteger esses lugares majestosos ameaçados pela ganância dos homens e pelo consumo desenfreado.

O projeto Genesis durou cerca de oito anos e custou algo em torno de 8 milhões de euros. Nesse período, Salgado e sua equipe fizeram inúmeras viagens e milhares de fotografias, publicadas em revistas e jornais internacionais. As viagens começaram com visitas às tartarugas das ilhas Galápagos e às baleias na costa da Argentina, e se estenderam à África, Oceania, chegando à Sibéria, onde registrou a vida dos netnets e suas renas. Ao todo, foram 32 países visitados pelo fotógrafo e sua equipe, e parte dessas imagens deu origem ao livro de mesmo nome do projeto.

Registro de uma beleza épica

Desde os seus primeiros cliques nessa nova fase, começaram a surgir fotos que, além do tema, apresentaram novidades com relação ao enquadramento e ao estilo. Nessas imagens, ele se aproxima do grafismo geométrico de fotógrafos como Henri Cartier-Bresson e Alexander Rodchenko e da forma épica de retratar a natureza de Ansel Adams. A foto abaixo, realizada na Península Valdés, Argentina, é um bom exemplo das mudanças incorporadas por Salgado nessa nova etapa.

cauda de baleia
A foto de uma cauda de baleia, na Península Valdés, Argentina, nos força a concentrar a atenção na forma geométrica triangular invertida em primeiro plano – bom exemplo das mudanças incorporadas por Salgado em ‘Genesis’. (foto: Sebastião Salgado/ Divulgação)

Nessa fotografia, o fundo simples e desfocado não oferece informação significativa para o leitor, forçando-o a concentrar sua atenção na forma geométrica triangular invertida que está em primeiro plano. A escolha de um detalhe esteticamente estimulante nos convida a entrar na imagem e passar um tempo com ela.

Observando com calma esse grafismo, num momento posterior à fruição da forma, vamos perceber que se trata do rabo de uma baleia sobre a superfície da água. O texto do livro nos informa que se trata de uma baleia-franca-austral, mamífero que costuma ficar com a cauda imóvel sobre a superfície do mar quando descansa. Essa imagem é um flagrante do momento em que ela se prepara para saltar, quando faz um rápido movimento com a cauda de maneira a projetar seu corpo para fora d’água. Nesse detalhe, em que a massa de água deslocada se funde ao corpo do mamífero, a força e pujança da natureza ficam bem evidentes.

Nesta última foto, podemos perceber mais uma característica que vai integrar boa parte das imagens da série: o aspecto heroico. Nessa imagem realizada no extremo norte do mundo, na Sibéria, o cinza pálido domina a paisagem unindo o céu e a terra (ou melhor, o céu e o gelo).

Siberia
Nesta imagem da Sibéria, é possível perceber mais uma característica que vai integrar a nova fase de Salgado: o aspecto heroico. O cinza pálido domina a paisagem unindo o céu e a terra. (foto: Sebastião Salgado/ Divulgação)

Em primeiro plano, se destaca uma mancha escura triangular, contrastando com os tons de cinza que dominam a cena. É possível identificar um ser humano, mas não podemos distinguir sua face, nem mesmo o seu sexo. Em segundo plano, junto a um trenó, podemos identificar outros homens (que formam a Gestalt de um quadrado) e uma cabana de forma triangular de onde sai uma fumaça da cor do gelo.

Essas pessoas, que vivem em moradas simples e usam trenós antigos, não passam de pequenas manchas negras sobre uma paisagem gelada e cinza, o que torna mais dramática essa composição. A ideia de dificuldade dos homens para enfrentar aquele ambiente inóspito domina a imagem. O sujeito dessa fotografia surge pequeno e frágil no meio do deserto gelado, mas ele parece ser do tipo ‘não desiste nunca’.

capa livro SalgadoA vista aérea do Refúgio Nacional de Vida Selvagem no Ártico, no Alasca, escolhida para ser a capa do livro, é uma das imagens em que podemos observar o novo interesse de Salgado pela beleza desmedida da natureza. Já aí fica evidente a troca do estilo dramático pelo estilo épico: em vez da dor e da fraqueza de uma pobre mulher vítima da globalização, ele nos apresenta a imponência da beleza da Terra. O drama humano parece ceder lugar à exaltação do mundo natural, que se revela em sua grandiosidade.

Devido à dificuldade em fotografar no solo, porque o terreno é íngreme e os rios muito rápidos e frios para atravessar a pé, Salgado trabalhou com planos gerais nessa região, o que foi uma escolha feliz – esse ângulo acabou por acentuar a magnitude das montanhas. O tom bíblico é reforçado pela luz projetada ao fundo que sugere a ideia de transcendência. De tão bela e perfeita, a paisagem chega a parecer artificial.

Discurso crítico

Desde que começaram a ser divulgadas as primeiras fotos do projeto Genesis, se tem dito que houve uma mudança significativa no trabalho de Salgado. No que se refere à forma e ao tema, isso é verdade; entretanto, no que diz respeito ao seu discurso, essa afirmação deve ser repensada.

Salgado não mudou seu discurso crítico em relação à maneira como percebe o homem se relacionando com seu hábitat

É fato que Salgado deixou de lado a denúncia das consequências de um mundo desigual para concentrar-se na apresentação de um planeta ainda intocado. Também é verdade que, nos seus trabalhos anteriores, ele não se preocupou tanto com os aspectos geométricos da imagem. Entretanto, se observarmos com cuidado, vamos notar que ele não mudou seu discurso crítico em relação à maneira como percebe o homem se relacionando com seu hábitat.

Salgado é um marxista que desde o início da sua carreira tem lutado contra o sistema capitalista e suas consequências: a desigualdade entre os homens, a exploração dos trabalhadores e as guerras, além do consumo exagerado que vem paulatinamente destruindo o planeta. Suas fotos se mantêm belas e seu projeto continua sendo o de sensibilizar o público para modificar essa situação. Em Genesis, ele continua combatendo o mundo do consumo e suas consequências, mas não mais pela divulgação de imagens trágicas e sim por imagens épicas.

André Melo Mendes é professor do Departamento de Comunicação Social da Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas da Universidade Federal de Minas Gerais. É membro do Grupo de Pesquisa em Imagem e Sociabilidade (GRIS)

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