Um modo particular de ler a obra do jesuíta Antônio Vieira (1608-1697) é o que a reinsere no seu tempo por meio da definição de conceitos e categorias do seu campo epistemológico e doutrinário. Quando se especifica a particularidade histórica dos sistemas de representação que fundamentaram sua prática em seu presente, obtêm-se categorias e conceitos metafísicos, teológico-políticos, éticos, jurídicos e retóricos.
Com o historiador alemão Reinhart Koselleck, lembro que é possível, com esses conceitos, construir com verossimilhança a forma e a função que a prática de Vieira tinha em sua época.
Vieira obedece ao preceito da Companhia de Jesus – “ser útil”. É um homem de vontade obstinada; seus contemporâneos o classificam como um tipo colérico. Não separa ação e palavra, pois as orienta como modos complementares de ordenar as três faculdades que escolasticamente compõem a alma – memória, vontade e inteligência – para intervirem nas questões do seu tempo.
Sua intervenção faz-se por meio de quatro categorias que dão significação e sentido aos assuntos de que trata. Elas são pressupostos metafísicos e operadores lógicos, teológicos e retóricos da sua interpretação do sentido da história. Trataremos esquematicamente de cada uma delas.
A primeira é a identidade indeterminada do conceito de Deus. Em toda a sua prática, Vieira a afirma como Causa primeira e final da natureza e da história, postulando que a Vontade dessa identidade transcendente se revela no tempo como conselho da vontade dos homens e orientação providencial do sentido da história. Para o jesuíta, tudo que existe e se passa no mundo é orientado pela Providência divina.
A segunda é a analogia. Deus faz os seres, os conceitos dos seres e os signos dos conceitos participarem em sua substância metafísica por analogia de atribuição – “Deus para todos” – como Criador de todos eles – e por analogia de proporção – “Deus diferentemente em todos” – segundo os graus hierárquicos da participação de cada um deles Nele.
A semelhança é a terceira dessas categorias. Todos os seres se relacionam entre si por semelhança, pois todos são efeitos criados pela mesma Causa e, simultaneamente, signos reflexos da mesma Coisa essencial. Como, obviamente, semelhança não é identidade, todos são diferentes, com existência própria.
A definição dos seres da natureza e dos eventos humanos como efeitos e como signos de Deus fundamenta a interpretação da história de Vieira. Ele estabelece relações de analogia e semelhança entre homens e acontecimentos do Antigo e do Novo Testamento com homens empíricos e acontecimentos do seu tempo, definindo a história profeticamente
Por fim, a quarta categoria: o juízo. Quando trata dos assuntos do Império português – a escravidão de índios, a guerra contra holandeses, a necessidade de abrandar a perseguição aos judeus e cristãos-novos etc. –, Vieira os analisa com as 10 categorias do Organon, de Aristóteles, e conceitos de memória e imaginação do De anima, também do filósofo grego.
Faz definições e estabelece predicados, oposições e concordâncias entre seres, conceitos e signos com a verossimilhança e o decoro dos gêneros da oratória sacra (o judicial, o deliberativo e o demonstrativo).
Sombra do futuro
Genericamente falando, a metafísica escolástica é profética, pois pressupõe Deus como a Causa final do tempo e da história. A partir de 1642, depois que foi a Portugal levar o apoio do Estado do Brasil à guerra que o rei D. João IV movia contra a Espanha, Vieira começou a utilizar os lugares-comuns da profecia cristã em uma profecia particular, o Quinto Império.
Interpretando os livros bíblicos de Daniel e Isaías; obras do abade Joaquim de Fiore (1132-1202); as Trovas de Gonçalo Anes Bandarra, o sapateiro de Trancoso, que no século 16 tinha profetizado a volta de um rei Esperado ou Encoberto; o texto De procuranda, do jesuíta peruano José de Acosta; os livros de Menasseh ben Israel, rabino de Amsterdã; e a infinidade dos textos canônicos dos padres e doutores da Igreja, Vieira propõe sua profecia.
Ele argumenta que os tempos dos quatro impérios anteriores ao português – o assírio, o persa, o grego e o romano – são tempos criados, semelhantes uns aos outros e diferentes entre si. São tempos passados, estão extintos e nenhum deles se repete no presente.
A única Coisa que se repete absolutamente idêntica a si mesma em todos eles e no presente é Deus, que os orientou providencialmente como Causa final deles, assim como orienta o Império português no presente.
Como anúncio profético ou “sombra das coisas futuras”, os tempos históricos, os acontecimentos exemplares e os grandes homens dos impérios passados prefiguram a consumação de todo o tempo na Eternidade, que participou neles com a mesma atualidade da Luz divina que orienta o presente da história portuguesa.
Aqui, justamente, aparece o conceito de tempo de Vieira. Ele pressupõe que, porque são análogos a Deus, todos os tempos históricos são “sombras” ou “antítipos” que anunciam a Eternidade que participativamente foi e é atual neles todos como seu “protótipo”.
O tempo humano ainda não realizou o reino de Cristo. A atualidade do reino na Eternidade é absolutamente real, mas permanece apenas potencial para a humanidade, que até o presente a viveu de modo incompleto. Cristo já veio uma vez, certamente, indicando o que se deve fazer.
É a vontade, como desejo do Bem, e a liberdade, como escolha do Bem confirmado por Cristo, que atualizam o reino de Deus na história. Os homens, diferentemente do que dizem Maquiavel, Martinho Lutero e João Calvino, podem contar com a luz da Graça como conselho de Deus na sua consciência quando agem.
Os passados prefiguram, como “sombras do futuro”, a realização do sentido providencial da história. Por isso, Vieira os retoma, repetindo, com Cícero, que a história é mestra da vida. Os exemplos da história confirmam a destinação providencial de Portugal, devendo ser imitados pela vontade de todos para aperfeiçoar o “corpo místico”’ do Império português.
João Adolfo Hansen
Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas
Universidade de São Paulo