Em 1895, Sigmund Freud escreveu o único texto que jamais publicou. Intitulado ‘Projeto para uma psicologia científica’, o trabalho só veio a conhecimento do grande público em 1950, 11 anos depois da morte do criador da psicanálise. Neste esboço, Freud postulava a existência de um sistema de neurônios responsável pela memória, outro grupo encarregado da percepção e ainda uma terceira rede de células nervosas que denominou de ‘neurônios psi’. A estes caberiam tarefas de discriminação e seleção de lembranças e percepções.
Talvez tenham começado neste último sistema suas dificuldades em seguir adiante com seu projeto. De fato, a existência de tal grupo de neurônios apontava para a suposição de células especializadas em funções de sujeito. Uma proposição neste sentido estaria em oposição a tudo aquilo que a psicanálise veio a postular durante o século seguinte.
Apesar de Freud nunca ter deixado de considerar a intervenção de variáveis biológicas, o sujeito teria sua vida psíquica constituída na dinâmica edípica, isto é, em seu posicionamento diante do desejo do outro. Em sua primeira concepção acerca do aparelho psíquico, Freud identificou três instâncias que o constituíam: a topográfica, a dinâmica e a econômica.
A primeira dizia respeito à localização dos eventos psíquicos, ou seja, se pertenciam exclusivamente ao sistema inconsciente ou se habitavam também a consciência. Freud estava interessado em compreender o que separava um sistema do outro e como um elemento do inconsciente se fazia representar na consciência. O aspecto dinâmico se ocupava da natureza paradoxal e conflitante da psique humana. Com frequência, o sujeito deseja algo e seu contrário, quer que alguma coisa aconteça e não aconteça ao mesmo tempo.
Aproximação com a neurociência
A dimensão econômica referia-se à intensidade do evento psíquico, àquilo que mais tarde definiu como força da pulsão. Haveria, na vida psíquica do ser humano, algo de que a razão ou a linguagem não dariam conta, uma descarga neuronal cuja intensidade ultrapassaria as possibilidades normativas do sujeito. É este aspecto que nos interessa mais de perto e permite uma aproximação com a neurociência.
Assim como as águas de um rio caudaloso sempre seguem o mesmo curso e nas enchentes costumam transbordar nos mesmos pontos, a descarga neuronal também irá produzir seus sulcos e se derramará, preferencialmente, da mesma forma. Em outras palavras, o sujeito repetirá comportamentos e produzirá sintomas. É nesse ponto que a neurociência intervém e, por meio da química, reduz a intensidade e o sofrimento do sujeito.
A psicanálise, por outro lado, poderia ser entendida como uma busca pelo sentido particular a cada sujeito. Seu propósito é levar o paciente a conhecer as razões de suas escolhas e assim expandir suas possibilidades de atribuição de sentido ao seu acontecer no mundo.
Este processo é tão mais bem-sucedido quanto mais o sujeito puder recordar e reconstruir sua história. Há ocasiões em que é absolutamente necessário evitar que as águas do rio transbordem; em outras, no entanto, são elas que produzem a fertilização do solo e a riqueza de um território.
Neurociência e psicanálise não se opõem e não se conflitam. Elas apenas divergem na escolha de seu objeto de estudos. Enquanto a primeira se debruça sobre as subestruturas do tecido nervoso, seus centros sensíveis e suas mediações químicas, a psicanálise se ocupa da tessitura do sentido particular ao sujeito, da estrutura de sua apreensão da realidade e dos centros sensíveis de sua história afetiva.
Sergio Medeiros
Instituto de Psicologia e Psicanálise
Universidade Santa Úrsula