Um grande vazamento em uma plataforma de produção de petróleo no oceano é detectado e controlado com a ajuda de ‘dispositivos’ capazes de degradar o composto rapidamente, evitando que se espalhe. Doenças graves, como o câncer e outras, são tratadas por ‘máquinas’ microscópicas, que identificam e atacam as células doentes de um paciente. Outros minúsculos ‘aparelhos’ atuam como fontes energéticas renováveis, não poluentes e autossustentáveis.
Os ‘dispositivos’ e ‘máquinas’ listados acima não têm componentes eletrônicos, como computadores e celulares: na verdade, todos são microrganismos vivos, reprogramados para realizar essas tarefas complexas de forma controlada e precisa. Parece ficção científica, mas não é. Esse panorama ainda não faz parte do cotidiano, mas já está sendo desenhado nos laboratórios de biologia sintética, área de pesquisa que trabalha para trazer essas aplicações para o dia a dia.
Esse novo campo de estudos pode ser visto como um sucessor da engenharia genética, com sofisticações possibilitadas pela biologia moderna: precisão, robustez, quantificações, simulações no computador…
Áreas diferentes
As duas áreas são diferentes. Na engenharia genética, o principal objetivo é alterar organismos inserindo em seu DNA genes que lhes dão novas características (soja, milho, tomate e outros vegetais resistentes a determinadas pragas que atacam as lavouras ou com enriquecimentos nutricionais, por exemplo). De início, é preciso identificar o gene de interesse em organismos naturais, como o gene de resistência a um herbicida presente em uma bactéria. O gene é então inserido em outro organismo, como um ‘transplante molecular’, o que resulta em um ser transgênico. Os produtos da engenharia genética já são reais há anos, seja em plantas transgênicas cultivadas e consumidas no mundo todo ou na produção de medicamentos (insulina e outros).
Na biologia sintética, os passos intermediários entre o isolamento dos genes de interesse e a geração do produto final mudam totalmente. Em primeiro lugar, a grande complexidade dos sistemas construídos nessa nova área requer uma ampla coleção de genes com diferentes funções. Além disso, estes precisam ser conectados uns aos outros, em um processo denominado ‘padronização’ – é como converter os genes em peças encaixáveis, semelhantes às de um quebra-cabeça ou brinquedo de montar. Após a padronização, as peças selecionadas são usadas para construir circuitos gênicos, que funcionam como circuitos eletrônicos. Uma vez implantados nos organismos hospedeiros, esses circuitos permitem a realização das tarefas específicas desejadas pelos pesquisadores.
Antes da introdução do circuito de genes no hospedeiro final, são elaborados modelos matemáticos que permitem simular seu comportamento em computadores. Isso possibilita revisar o projeto de engenharia e fazer modificações que melhorem o desempenho. Após confirmar, em novas simulações, que o sistema funciona como desejado, ele é introduzido nos hospedeiros adequados, que podem ser bactérias, plantas ou até células de mamíferos.
Os ciclos de padronização-simulação-validação compõem a grande inovação que a biologia sintética proporciona para a engenharia de sistemas biológicos e envolvem a colaboração entre profissionais de diferentes campos, como biologia, agronomia, medicina, física, matemática e química.
As possibilidades dessa engenharia de sistemas biológicos são tão amplas que a imaginação parece ser o limite para o que é possível realizar. Os exemplos citados no início deste artigo, por exemplo, parecem exercícios de futurologia, mas são resultados reais. Pesquisadores da Universidade da Califórnia, em Berkeley (EUA), desenvolveram um circuito gênico que, implantado na bactéria Escherichia coli, permite que esta reconheça e invada células cancerígenas, atuando como um sistema que direciona a liberação de drogas em tumores. Em outro trabalho, na Universidade de Emory (EUA), foi desenvolvida uma bactéria capaz de ‘nadar’ em direção a um poluente ambiental e liberar enzimas que degradam esse composto – gerando, portanto, um processo de biorremediação.
Outros exemplos têm aparecido em publicações científicas, com frequência cada vez maior. A maior parte das aplicações obtidas ainda não chegou ao nosso cotidiano, mas os estudos comprovam que esses cenários são possíveis. Um produto da biologia sintética que já começou a ser produzido é um medicamento destinado a combater a malária. A droga artemisina, antes extraída de plantas, está sendo obtida com o uso de circuitos construídos por engenharia gênica: um precursor da substância é produzido por uma levedura reprogramada e transformado em artemisina por outros processos. O processo torna o medicamento mais barato e permite um fornecimento mais estável, o que deverá ajudar no controle da doença.
A velocidade com que vêm surgindo novos resultados das pesquisas em biologia sintética indica que esse novo campo, em poucos anos, poderá gerar muitos outros produtos, com diferentes aplicações, trazendo efetivos benefícios à sociedade.
Rafael Silva Rocha e Tie Koide
Departamento de Bioquímica e Imunologia
Faculdade de Medicina de Ribeirão Preto
Universidade de São Paulo