Mobilidade urbana: como sair da inércia?

Entende-se geralmente por mobilidade urbana a possibilidade de deslocar-se facilmente para fins de lazer, trabalho, estudo, prática de exercícios físicos etc. Essa facilidade de deslocamento não deve depender da modalidade de transporte (seja público ou privado), nem de eventuais limitações físicas do indivíduo. É naturalmente desejável que essa movimentação, no interior das cidades, ocorra com segurança, conforto e higiene, e que os preços sejam acessíveis aos cidadãos.

A mobilidade urbana, assim conceituada, resulta de três processos, os quais implicam ações de curto, médio e longo prazos: o planejamento dos transportes (o que inclui veículos, redes viárias, infraestrutura de apoio e integração, serviços de transporte público), o planejamento urbano e regional (o uso do solo) e a gestão das áreas metropolitanas. 

No caso dos transportes, três fatores principais são levados em conta quando se busca garantir a mobilidade nas cidades: a demanda, a oferta e o desempenho dos sistemas

Essas três linhas de ação, segundo o Programa das Nações Unidas para os Assentamentos Humanos (UN-Habitat), interagem umas com as outras e são, na verdade, conjuntos de elementos – de natureza física, econômica, social, política e institucional – interligados.

No caso dos transportes, três fatores principais são levados em conta quando se busca garantir a mobilidade nas cidades: a demanda, a oferta e o desempenho dos sistemas. Fala-se em sistemas porque não se pode pensar em elementos isolados, como avenidas, ruas, viadutos etc. O sistema de transportes deve necessariamente ser visto como um conjunto de elementos interdependentes. Assim, a mobilidade urbana e, por extensão, a qualidade do sistema de transporte nas cidades, reflete um equilíbrio dinâmico entre aqueles três fatores.

Esse equilíbrio é a meta essencial do processo de planejamento dos transportes, que inclui as seguintes fases: 

1) monitoramento das atuais condições de transporte e uso do solo; 

2) projeção da população, do nível de emprego e das tendências de uso do solo; 

3) identificação de problemas de transporte (atuais e futuros) e das necessidades de estudos de circulação detalhados; 

4) desenvolvimento de planos de longo prazo e de programas de curto prazo, que implicarão investimentos de capital e ações operacionais; 

5) estimativas dos impactos de melhoramentos no sistema de transporte atual (envolvendo custos, meio ambiente, facilidade de acesso ao trabalho e aos serviços urbanos, além de outros aspectos); 

6) avaliações desses melhoramentos (com base em múltiplos critérios, quantitativos e qualitativos, e sob os pontos de vista ambiental, econômico, financeiro, social e outros); e 

7) geração de projetos que visem melhorar de modo substancial a mobilidade urbana.

Conduzido por uma organização de âmbito metropolitano, esse processo é contínuo e passa por realimentações. Dele devem participar engenheiros, urbanistas, economistas, geógrafos, estatísticos e, sobretudo, representantes da população que usam o transporte urbano – de péssima qualidade no Brasil. Sem o envolvimento real dessa população, o planejamento de transportes nas cidades não passa de exercício tecnocrático sem grande expressão.

Trem
O sistema de transportes deve necessariamente ser visto como um conjunto de elementos interdependentes para tentar garantir a mobilidade nas cidades. (foto: Thiago Fernandes Marinho/ Flickr – CC BY-NC 2.0)

Existem, porém, duas formas distintas de pensar a mobilidade urbana. A mais tradicional associa a questão essencialmente ao deslocamento físico e à facilidade de acesso a distintos destinos de viagens. A nova forma, no entanto, enfoca a crescente valorização do pedestre e das interações humanas e sociais. Por essa segunda visão, a identificação do cidadão com a cidade torna-se muito mais importante do que a velocidade em que este se desloca.

Esse novo conceito torna a cidade mais agradável ao ser humano: é a cidade relativamente vagarosa, arborizada, com redes de utilidade pública quase invisíveis (pois passam a ser enterradas), onde o deslocamento de pedestres e de bicicletas tem claro privilégio sobre o de veículos (e, por isso, com melhor qualidade do ar), sem a poluição visual de cartazes ou painéis de propaganda, e onde o adensamento é maior, com as pessoas habitando mais perto de seus locais de trabalho. Esta é, em última análise, a mobilidade urbana que se quer, voltada para uma cidade sustentável. 

 

Situação no Brasil 

Enquanto no início do século 20 cerca de 10% da população brasileira vivia em áreas urbanas, ao final desse período o percentual aumentou para 50%. Estima-se que, por volta de 2030, as cidades concentrarão 90% da população nacional. As maiores cidades do país têm sido vítimas de um crescimento quase totalmente desordenado, que segue, muitas vezes, a lógica da expansão capitalista, sem um planejamento contínuo de longo prazo e sem qualquer comprometimento com a continuidade na gestão urbana.

Experimenta-se, então, ausência de eficácia (fazer o que é preciso) e eficiência (fazer bem feito) na gestão urbana. Não existe um planejamento que de fato integre os transportes ao uso do solo, com destaque para a habitação – uma imensa carência da população das cidades brasileiras. A falta dessa integração e de planos de longo prazo tem feito com que nossas metrópoles sejam dispersas, desordenadas e congestionadas.

Hoje, a baixíssima qualidade da mobilidade observada na maior parte de nossas cidades tem repercussões sobre a produtividade média dos trabalhadores

Hoje, a baixíssima qualidade da mobilidade observada na maior parte de nossas cidades tem repercussões sobre a produtividade média dos trabalhadores. Por outro lado, a recente política econômica, ao aumentar as facilidades para a compra de automóveis, só piorou a situação dos deslocamentos urbanos em todo o país. Essa decisão, acirrada pela crescente decadência do transporte público, faz com que, na maioria das cidades brasileiras, a lógica do transporte particular predomine sobre a do transporte público. Com isso, problemas de mobilidade afetam hoje não apenas as cidades grandes, mas também as de porte médio e pequeno.

A perda de qualidade da mobilidade nas principais cidades brasileiras se reflete nas manifestações de rua que vêm ocorrendo desde o ano passado. No país, atualmente, o deslocamento urbano é uma questão fundamentalmente política e, como tal, exige muito mais que soluções tecnológicas, embaladas em um discurso tecnocrata, de pretenso impacto nos meios de comunicação. A solução do problema exige, além de vontade política, um pacto amplo que envolva o setor público, os usuários das diferentes redes de transporte urbano e o setor empresarial que oferece tais serviços. Essas redes incluem as vias urbanas (e o suporte à sua operação), todos os serviços de transporte público urbano (e seu suporte), os estacionamentos, as ciclovias, os pontos de transbordo etc.

 

Você leu apenas o início do artigo publicado na CH 317. Clique aqui para acessar uma versão parcial da revista e ler o texto completo.


Luiz Flavio Autran Monteiro Gomes
Ibmec 

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