O que é um bom samba? E por que certo pagode é ruim? Adotamos muitas dessas classificações em nosso dia a dia sem parar um minuto para analisá-las. Que entidade superior confere ao cavaquinho de Waldir Azevedo uma aura refinada? E o que, para alguns, faz da voz aguda do cantor Netinho algo sem fineza? A constituição histórica desses conceitos foi o objeto de estudo da tese de doutorado do sociólogo Dmitri Cerboncini Fernandes na Universidade de São Paulo.
A pesquisa começou com a análise dos primeiros críticos que abordaram a música popular, na década de 1930. “Antes disso, as composições produzidas nas camadas menos favorecidas da sociedade estavam fora do foco da crítica especializada, voltada para a chamada música erudita”, explica Fernandes. A partir dessa época, porém, começaram a ser estabelecidas categorias para a música composta pelos artistas populares.
Até então, a classificação dos gêneros musicais girava em torno de 35 nomenclaturas que não tinham uma lógica aparente. Segundo o sociólogo, gêneros como polca, tango brasileiro, batuque e maxixe se misturavam, e a principal diferença estabelecida entre alguns deles era a presença ou não de versos. “Isso mudou à medida que a música popular ganhou espaço nas críticas publicadas nos jornais”, diz Fernandes.
Em um primeiro momento, para os críticos pioneiros, “os legisladores da música popular”, o samba bom e autêntico era aquele produzido dentro das comunidades, por moradores locais. “Era preciso que a lógica do lucro não estivesse ligada à produção musical para esta ser considerada legítima. Com o tempo, porém, essa classificação tornou-se menos objetiva e mais ideológica”, comenta o sociólogo.
Os críticos dos anos 1930 não consideravam bons os músicos que estavam no cenário de gravações de discos e apresentações em rádios (como Noel Rosa, por exemplo, hoje considerado extraordinário), mas na década de 1950 a crítica passou a ressaltar a intenção dos músicos. Nesse momento, segundo Fernandes, começou a se levar em conta que o artista podia estar envolvido nesse meio, sem que seu desejo fosse exclusivamente comercial.
No entanto, aqueles artistas que fizessem mesclas e abandonassem o culto aos autores tradicionais do samba eram crucificados ferozmente. “Foi o que ocorreu com Cauby Peixoto e outros cantores de bolero que fizeram muito sucesso”, exemplifica o pesquisador. Só com o surgimento dos movimentos brasileiros da bossa nova e do Tropicalismo a ideia de mistura começou a ser admitida pelos críticos como algo criativo e legitimamente brasileiro.
O sociólogo conta ainda que a própria expressão ‘samba de raiz’ não é bem vista pelos críticos do gênero hoje. “Nomenclaturas como essa e outras, de origem popular, apenas definem o que hoje é considerado um bom samba ou um samba impuro”, explica Fernandes. “Mas essa definição nem sempre tem a ver com a estética da canção – é, na verdade, uma construção histórica e social.”
Fator de integração social
A tese não analisou isoladamente as técnicas musicais (estilos, instrumentos, arranjos), e sim como estas serviram de base para a construção de conceitos de qualidade pelos críticos, que depois influenciariam a população. A música, segundo Fernandes, também é um fator de integração social. “Muitas vezes, o gosto por estilos musicais e outras expressões culturais é parte do sentimento de inclusão em determinada classe social”, disse. “Esse processo é inconsciente, mas constante.”
A pesquisa também constatou uma inversão curiosa nos grupos sociais que apreciam cada estilo. “Enquanto o samba autêntico era, inicialmente, aquele produzido pelas comunidades para elas mesmas e, portanto, ouvido pelas camadas pobres da sociedade, hoje quem escuta o ‘samba puro’ é a classe média”, lembra sociólogo. “Já o pagode, crucificado pelos críticos, toca nas rádios das comunidades.”
A tese foi premiada pela Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (Capes) como a melhor de 2011 na área da sociologia.
Dmitri Fernandes, hoje professor da Universidade Federal de Juiz de Fora, lembra a importância de estudar a composição histórica dos conceitos naturalizados no cotidiano: “Enquanto em um lugar ouvimos as músicas mais rebuscadas da cultura tradicional, em outros, logo ao lado, tocam os gêneros modernos, e esse encontro é inevitável”. “Gostar de um ou outro gênero é também uma demonstração de posição social, e é o estudo dessa conformação que interessa à sociologia”, conclui.
Isadora Vilardo
Ciência Hoje/ RJ
Texto originalmente publicado na CH 311 (janeiro-fevereiro de 2014).