Rio de Janeiro

Adoradores do futebol devem estar exaltados. Pois uma Copa do Mundo em nossas terras é, para muitos, uma notícia excitante. Enquanto alguns comemoram, governos parecem se mobilizar em obras de infraestrutura ou estética – seja para agradar aos turistas, seja para amenizar as graves mazelas que acometem nossas cidades. Mas dúvidas ainda perduram. Licitações suspeitas, desvios de recursos públicos em grandes obras, parcerias espúrias entre o público e o privado…

Bem, brasileiros estão habituados a discussões que se embrenham por essas veredas. Mas, na verdade, ainda não temos clareza para vislumbrar o legado que os megaeventos esportivos – a Copa de 2014 e as Olimpíadas de 2016 – deixarão em nosso país.

Para refletir sobre o assunto, a CH conversou com a geógrafa Olga Firkowski, da Universidade Federal do Paraná, respeitada estudiosa das questões urbanas no Brasil. Firkowski integra os quadros do Observatório das Metrópoles, um Instituto Nacional de Ciência e Tecnologia (INCT) do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq). Ela participou em setembro do 37º encontro anual da Associação Nacional de Pesquisa em Ciências Sociais (Anpocs), em Águas de Lindoia (SP), onde expôs suas críticas e preocupações acerca do legado dos megaeventos que estão por vir. “É constrangedor pensar que precisamos de uma desculpa do tamanho da copa para que obras importantes e necessárias tenham a mínima possibilidade de sair do papel”, disse.

Olga FirkowskiCiência Hoje: As obras se destinam mais ao conforto dos eventos esportivos ou mais ao bem-estar da população que habita as cidades em questão?
Firkowski:
Depende. Os projetos que já existiam não têm só a Copa como horizonte. O problema é que boa parte desses projetos foram deixados em segundo plano em detrimento daqueles específicos para atender as demandas dos megaeventos.

Vejamos o caso de Curitiba: as obras de infraestrutura de que a cidade precisa foram retiradas da perspectiva do médio prazo. Priorizaram-se as reformas que contemplam o caminho entre o aeroporto, a rodoviária e o estádio. Dinâmicas semelhantes são observadas em diversas outras cidades brasileiras que receberão a Copa do Mundo.

Que benefícios podemos esperar para as cidades brasileiras a partir do legado dos megaeventos? Dá para ser otimista?
Sim e não. Tudo depende do preço que a sociedade está disposta a pagar e como ela entende esse legado. Obras de mobilidade são importantes e necessárias. Mas é constrangedor pensar que precisamos de um álibi – como a Copa do Mundo – para que essas intervenções tenham a mínima possibilidade de sair do papel. Reforma de aeroportos, estruturas viárias, metrôs… Isso tudo não é somente para a Copa. É para o bom funcionamento das cidades. E que sociedade é essa que precisa de uma desculpa do tamanho da Copa para tirar isso do plano das ideias e fazer o que deve ser feito?

Como a senhora entende o caso de Recife, por exemplo? A cidade está dedicando generosos recursos à chamada ‘cidade da Copa’, construída especialmente em função da Copa do Mundo.

Os megaeventos todos irão passar, mas o modelo dessa relação público-privada que eles têm potencializado permanecerá

A dúvida: será um legado positivo ou negativo? Será mais reprodução de um estilo urbano baseado em condomínios fechados ao lado de um grande centro de lazer? Um modelo de autossegregação de camadas sociais distintas? Como será a integração dessa ‘cidade da Copa’ com o município?

Só saberemos no futuro. A princípio, não me parece um projeto dedicado à melhora da qualidade de vida das pessoas que vivem na região. Importante lembrar: a Copa é só um exemplo. Os megaeventos todos irão passar, mas o modelo dessa relação público-privada que eles têm potencializado permanecerá.

Curitiba priorizou as obras de conexão com o público externo, também atentando mais para os megaeventos do que para o bom desempenho do cotidiano urbano. Isso tem acontecido em outras cidades também?
Sim, mas Curitiba foi o caso mais emblemático. As obras gerais de infraestrutura saíram da pauta e entraram as intervenções no corredor que liga o aeroporto ao estádio, passando pela rodoferroviária. Pensa-se, sobretudo, no turista.

Que conflitos ou contradições sociais podemos esperar a partir das obras para os megaeventos?
A resposta pode ser encontrada em um exemplo local, que reflete uma dinâmica talvez generalizada, que é a reforma na rodoferroviária de Curitiba. Cerca de 40 permissionários – pequenos comerciantes, como donos de bancas, lanchonetes, vendas em geral – perderão seus ofícios. Pois o novo projeto prevê a ocupação desse comércio a partir de licitações. Logo, o pequeno perderá seu espaço. Marcas como Subway, McDonalds, Casa do Pão de Queijo, O Boticário…, empreendimentos de maior expressão econômica são os que tomarão conta desses espaços, antes ocupados por gente simples.

O geógrafo inglês David Harvey chama esse processo de ‘acumulação por despossessão’. Retiram-se uns; colocam-se outros. É claro que, quando utilizarmos a nova rodoferroviária, ficaremos contentes e diremos algo como: “Que legal, agora temos aqui um ‘serviço padrão’”. Mas nos esqueceremos de que esse ‘serviço padrão’ custou a expulsão daqueles que ali estavam há muito tempo e foi a gênese de um problema social.

Você leu apenas o início da entrevista publicada na CH 311. Clique no ícone a seguir para baixar a versão integral.

PDF aberto (gif)

Outros conteúdos desta edição

614_256 att-22449
614_256 att-22447
614_256 att-22445
614_256 att-22443
614_256 att-22441
614_256 att-22437
614_256 att-22435
614_256 att-22433

Outros conteúdos nesta categoria

614_256 att-22975
614_256 att-22985
614_256 att-22993
614_256 att-22995
614_256 att-22987
614_256 att-22991
614_256 att-22989
614_256 att-22999
614_256 att-22983
614_256 att-22997
614_256 att-22963
614_256 att-22937
614_256 att-22931
614_256 att-22965
614_256 att-23039