O ano de 1942 foi marcado pela radicalização da política nazista quanto à assim chamada “questão judaica”. A marca do regime hitlerista, iniciado em 1933, foi a afirmação do antissemitismo como política de Estado. As primeiras vítimas dessa passagem ao ato do antissemitismo foram os próprios judeus alemães, progressivamente desvinculados da nação da qual faziam parte.
Esta, sob o nazismo, passa a ser definida como uma comunidade de sangue, cuja unidade em larga medida dependerá da invenção de inimigos impuros. Processo admiravelmente registrado nos Diários do filólogo Victor Klemperer (1881-1960), um relato da continuada privação cívica, social, política e biológica da pequena comunidade judaica alemã (1% da população em 1930).
Com a eclosão da guerra, a política de Estado antissemita, estendida em 1938 à Áustria e à Tchecoslováquia, torna-se um dos eixos centrais da expansão alemã. Tem início, em termos práticos, “a destruição dos judeus europeus”, título adotado pelo historiador Raul Hilberg (1926-2007) em obra incontornável.
A expansão da política antijudaica adquire dramática aceleração em 1942: em janeiro, os nazistas, na Conferência de Wansee, fixam tanto a doutrina quanto o encaminhamento prático da “solução final da questão judaica”: Auschwitz e Treblinka introduzem na experiência humana a terrível inovação do campo de extermínio.
A Polônia foi o primeiro laboratório da destruição dos judeus: ali não apenas foram fixados os principais campos da morte, como também praticou-se em larga escala a política de guetos – o mais célebre foi o de Varsóvia, destruído em 1943, após heroico levante.
Em novembro do mesmo ano, Jan Karski (1914-2000), diplomata polonês ligado à resistência antinazista e a serviço do país no exílio, realiza a primeira missão consistente de denúncia ao mundo do que se passava na Polônia, aí incluído o tratamento sem precedentes dado à população judaica.
Narrativa do horror
A narrativa da missão, pelo próprio Karski, ficou registrada em Shoah, filme magistral do francês Claude Lanzmann (com cerca de nove horas) sobre o Holocausto. No filme, Karski apresenta um relato vívido de suas visitas clandestinas ao gueto de Varsóvia e ao campo de passagem de Izbica Lubelska.
Anos após concluir Shoah, o cineasta lançou o admirável Relatório Karski, com cerca de 50 minutos. O foco já não é a narrativa do que Karski viu na Polônia, mas as reações de seus interlocutores ocidentais diante do que a eles foi narrado. Por iniciativa do Instituto Moreira Salles, foi lançada, em um conjunto de DVDs, no final de 2012, a obra maior de Lanzmann, acrescida do Relatório.
A missão incluiu contatos com os governos britânico e norte-americano. No primeiro, foi recebido por Anthony Eden, então ministro do Exterior. No segundo, Karski esteve com o presidente Franklin Roosevelt e com personalidades públicas.
Um elemento comum das conversas com Roosevelt e com Felix Frankfurter, juiz da Suprema Corte, foi a reticência de ambos diante do relato sobre os judeus poloneses. Mais que depoimento histórico, o Relatório enseja uma reflexão sobre o tema da escuta, tão caro à psicanálise.
Nesse particular, a conversa com Frankfurter foi exemplar. Ele mesmo judeu, o juiz diz não acreditar no que acabara de ouvir. Mas é preciso bem escutar essa ‘não escuta’. Frankfurter não diz que Karski mente. Afirma tão somente que o que é dito é inacreditável.
A estrutura de sua escuta não comporta a narrativa do horror do extermínio. Não se trata de negacionismo barato, e menos ainda de cumplicidade com os carrascos, mas de problema ainda mais grave: o da inadaptação da escuta humana para o extremo e o irreparável.
Coisa semelhante foi vivida pelo italiano Primo Levi (1919-1987), em suas primeiras iniciativas de revelar o que viu e passou em Auschwitz: tudo aquilo aparece como inacreditável. Aqui reside bem a radicalidade do nazismo: pôr no mundo um experimento que os ouvidos não recolhem e diante do qual a própria linguagem colapsa.
Renato Lessa
Departamento de Ciência Política, Universidade Federal Fluminense
Instituto de Ciências Sociais, Universidade de Lisboa
Texto originalmente publicado na CH 303 (maio de 2013).